28/12/2007

Vermelho

Acenda as velas do seu quarto, reze aos seus deuses pela sua alma perdida e pela minha que se perdeu. Quantas vezes eu te disse o tamanho do meu doce amor?
Saia pela rua, devastada por tudo de ruim que há em nós, e ande por aí, perdida.
Sinta a maresia da manhã, o orvalho que a tudo purifica, o ronronar do mar distante. Olhe através do horizonte, até onde enxerga?

Dos olhos além de mim, há apenas um vento litorâneo, suave e sempre presente. Em mim e em tantos outros, sempre o mesmo gosto, o mesmo sabor, a mesma alma. Festejaram por mim e dançaram por mim, e o que restou agora? Apenas uma outra alma enjoada do balanço do mar.
Histórias. Sorrisos. Há sim, alguém tão perfeita.
E amanhã, depois que a chuva e a neve passarem, vou à caça. À caça de uma nova sensação, de uma nova manhã, de um novo oceano, com um novo sabor, com um novo mistério.
E através da escuridão dos lugares sombrios da cidade, veja-me. Eu sou aquela que passa despercebida na multidão. Aquela, a de máscara, aquela que mente. "Você ainda me ama? Você um dia me amou?"

Eu sou aquela que tem sua alma do avesso, aquela que sente dor em saber que as borboletas do outro lado do mundo morrem quando batemos palmas.

Hoje, quando for dormir, pense em mim. Eu não sou uma criança. Eu não sou ingênua. Você não é tudo isso, nem eu. Eu não sou divertida, eu não sou racional, você não é perfeita, e eu sinto muito, muito medo disso tudo.
Pequenas verdade, que ultrapassam qualquer mentira que eu disser ou pensar em dizer.

Essa noite, tranque as portas, feche as janelas, esconda as chaves. Acenda o que de ti há em todas e em mim também. Durma suave ao meu lado. O dia da caçada está perto.




"Dos fantasmas dos meus sonhos,
você é o último que dá adeus."


























Que cor você está vendo agora?

21/12/2007

Fantasma


Sem dizer nada ela me olhou. Bem fundo, ela não só olhou, ela viu. Ela me percebeu, lá no meio daquela gente toda, vestida de cinza, eu tão apagada na multidão. Eu vi ela balbuciar alguma coisa naquele mar de gente, mas não entendi sequer uma palavra. Ela me chamou a atenção, a única que andava de cabeça eguida com ar de serenidade no meio de toda aquela gente. Todos com muita pressa, cheios de sacolas, carregando um falso espírito natalino comprado a preço de liquidação, correndo como ratos no esgoto.

Se eu esticasse o braço poderia tocar seu rosto. Neve, branca de neve. Perfume de rosas. Olhos crepitantes e velhos, olhos velhos.

Alguém bateu seu ombro no meu e eu a perdi de vista. Uma moça tão linda, de ar tão vazio... Vôou no pôr-do-sol e perdeu-se na imensidão?



E eu fiquei lá, cinza.
Fantasma.

06/11/2007

Trissomia de 2

.
Que adianta agora dizer que amei,
Que adianta agora falar o que senti?
O que há em mim me faz diferente,
Em um modo diferente de amar, e só.
E agora não há nada que se possa fazer,
Apenas sentar e esperar que o rio nos leve.
E se ele nos levar para um Mundo de Sonhos,
Prometo que finjo ser a boa menina que sempre fui,
A perfeita dama cavalheira.
No fundo é apenas uma criança, ela disse.
E eu respondi que por fora eu também era.
Ela apenas consentiu, e sorriu.
E eu decidi ficar mais um pouco.

.

27/10/2007

Mergulho no infinito

Tomo um profundo suspiro em mim, encho os pulmões, cerro os olhos e os punhos. Encolho-me de encontro à parede e abro a armadura de uma só vez, revelo o peito nu, ainda com medo e respiração trancada. A falta de oxigênio chega logo aos movimentos, ainda firmes, mas já começando a ficar dormentes. Eu temo!
E a lança apontada para ele, meu coração, pulsante, tão ferido, tão vivo. E ele também sente medo, bate rápido, urra guerreiro em um último momento, tentando não parar de vez, usando toda sua capacidade sanguínea, exauri o corpo arfando o peito de ar preso.
Que seja sua última luta, ou a mais bela, ou a ínfima parcela do que ainda há de vir.
Que seja a terra sonâmbula que se move enquanto ainda houver sonho.

Que sejam olhares cúmplices, um coração tão dramático, tão dividido. Doce com sua alma brilhante no escuro cego, o ouro na pele ou a cabeça que cai do corpo.
Que sejam seus muitos nomes, idades, vidas perdidas e reencontradas em um corpo frágil. Que seja a velha de um olho só que tece o tapete da vida, que brinca com as agulhas, que cria paisagens tão belas e tão etéreas, com sua lã de sonhos e nuvens com sabor de àlcool.

Que seja o veneno viciante em uma taça de prata e rubi, e aquele maldito barman de sempre me olhando com cara de desafio.
- Ok, eu bebo, mas só porque minha vida anda muito chata tá?!
- Aham. Vida chata, sei. O que mais tu quer?

Eu silencio. E bebo. Com gosto, eu bebo.

E me vejo assim, de repente, uma pirralha estúpida contra a parede, de peito aberto para o grande espelho, e ele, o Deus dos meus sonhos, Deus Pan, a Eterna Criança, com seu sorriso brilhante, brincando de guerra com uma lança de plástico barato apontada pra mim!
Maldito pirralho, tu me paga!
Saio e vou até o grande bar do Centro da Terra da Vida.
- O que tem de novo pra mim?
- Chama-se Insensathez. Guardei especialmente pra ti. Tua vida anda meio chata, não é mesmo? - Cara de ironia do maldito barman.
Ele me apresenta uma nova taça, bela e rústica, pesada, feita de bronze. Dentro, uma bebida de cheiro forte, transparente como água, borbulhante como vinda do próprio inferno.
- Quanto?
- Pra ti, que é prata da casa? Nada! É por conta da Velha do Destino. Ela gosta de ti.
- Não, não, por enquanto eu passo.
O barman se escora no balcão.
- Pena. Eu apostei com ela que tua ia beber, mas pelo jeito...
Pego o miserável copo, cheiro a bebida. Agre, penetrante. Meus olhos lacrimejam. Hesito.
E bebo, afinal, eu sempre bebo!
E eis-me aqui, com a instigável insensatez, e uma profunda azia. E o meu pequeno Peter, adormecido em algum canto escondido da casa.
Batem na porta. Quem virá agora?
Maldito barman!

20/10/2007

Dos dedos no guache, da Alma de Lua


Então, ao molhar seu dedo indicador no guache púrpura e escrever infantilmente seu nome no grande papel branco aberto no chão, ela se recordou da primeira palavra que escrevera, há tantos e tantos anos atrás. "Lua", recordava-se bem. Desenhava-a e escrevia-a em milhares de tamanhos e cores diferentes, desrespeitando as linhas duras do caderno de caligrafia que ganhara da mãe.


Enquanto pegava a caneta com a mão direita e lhe fazia as curvas enluaradas, segui-a também com a boca, articulando cada volta que a lua lhe apontava. A ponta da língua contra os dentes, um gostoso bico de beijo e então um alívio nos músculos da boca, abrindo-a graciosamente num derradeiro fim de noite, e lá estava ela, com suas curvas doces e pálidas, dos seus cornos apontando sempre pra cima, e sempre pra ela. Gostava da palavra, gostava de como tudo aquilo lembrava-lhe uma amiga de infância, a doce lua desenhada em linhas de escrever.


Voltou a si, escrevendo o próprio nome, encantada ainda com a lembrança que se havia há tanto sido enterrada. E olhou-se a si mesmo, uma adolescente emendando seu nome à uma palavra tão simples, como se as duas fossem uma só. A semi-adulta, pra sempre uma semi-criança, mas, e de resto? Pra sempre também a Irmã Lua, sem sombra de dúvida. Um alter-ego tão semi-deusa, uma semi-louca, pra sempre apenas semi-realista.



Para que manter os pés no chão?



... Seu lugar foi sempre cruzando as linhas que prenderiam o desenho, ultrapassando-as por uma pincelada despreocupada de guache da cor-dos-sonhos.




















"O padrão que define,
é o mesmo que aprisiona"

14/10/2007

Father Alcohol


E enquanto as feridas ainda abertas, enquanto os pensamento ainda fluem sem obstáculos, eu sou livre sob o álcool.
Eu sou alguém livre, eu sou apenas Peter Pan, criança com toda a verdade em punho, lançando-a para todos os lados... Sem medo... Sem dó, ou mesmo consentimento...
Eis-me aqui, com a carapaça do coração totalmente aberta, totalmente desprotegida.
Que há de ser de mim?
Que há de ser da verdade?
Que há de ser de mim mesma desarmada?

Apenas mais uma criança, porque não?
Apenas menos um adolescente revoltada, porque não?
Apenas menos uma lembrança, mais uma história, menos um romance...

Eu mereço esse inferno!

12/10/2007

Eu Acredito...

Peter Pan acordou assustado em sua cama macia feita de palha, algum tempo depois de ter tomado sua pequena dose de remédio. Havia dormido demais, pensara, o dia já ia alto.

As coisas da casa estavam fora do lugar e quando viu Alice contando histórias para os meninos perdidos, viu que dormira mais do que pensara. Alice estava diferente, com seus cabelos mais longos e seus gestos mais largos. Ela também estava mais alta, os olhos mais profundos, a voz mais severa, mesmo ao falar do amor de suas histórias de criança. Também os meninos perdidos, estavam diferentes, pediam histórias com mais sangue, com mais mortes, com menos diálogos e mais aventura, e Alice mesmo, contava histórias menos fantasiosas. Peter Pan sentiu-se confuso, daquele jeito que a gente se sente quando perde algo no ar ou quando dormimos demais e perdemos a noção do tempo. Parado na porta da cabana, via algo que achara impossível ter acontecido. Estavam mais velhos. Alice, e mesmo os meninos perdidos... Estavam todos mais velhos.



Peter Pan correu para dentro e olhou-se apressadamente no espelho temendo ter acontecido aquilo também com ele, mas continuava igual, em suas roupas de garoto feitas de folhas e linho, e que como em um encantamento, permaneciam iguais.



Na mesa, Dorothy e o Coelho Branco o olhavam descuidadamente, porque era Hora do chá. Sempre era, afinal. E sim, mais velhos, como Pan havia esperado que não estivessem. Gostaria que fosse um pesadelo. Já não tinha seus pensamentos tão felizes.


Peter Pan, então, brincando de acreditar que estava acordado, sentou-se junto aos meninos perdidos, agora quase rapazes, para ouvir as misteriosas histórias de Alice de Além Mar. Estampou um longo sorriso no rosto, e como o Deus Pan, Pai das Traquinagens, tratou de aproveitar pra ser criança, por um pouco mais de tempo.

07/10/2007

Wonderemerald Nevercity



E Peter Pan apertou muito os olhos para enxergar o que havia escrito no fundo do relógio do Coelho Branco. Via-se bem pequenina, em letrinhas minúsculas entalhadas com capricho, quase atrás dos ponteiros a seguinte expressão:

"VULNERANT OMNES, ULTIMA NECAT"

Então Peter Pan se viu de novo criança, totalmente perdido em um mundo de loucos, ao lado de Doroty e Alice, ainda esperando acordar em sua Nevereland. Teve vontade de rir quando não podia, e chorar de medo quando todos já tinham se acotumado com a paisagem insana que mudava constantemente. Eram todos deficientes de algo, de coração, de coragem, de cérebro, de sanidade... E ele? Perdido e para sempre uma criança, sem poder mais voar, era também um deficiente.
Deficiava-se dele mesmo.

Após uma hora tentando entender o que estava escrito além dos ponteiros, Peter Pan devolveu o relógio ao Coelho. Sorriu infantilmente como sempre, piscou para Alice e Doroty, olhou para o Coelho não mais apressado e disse:

"Uma hora a gente acerta..."

02/10/2007

Metade Amor, Amor pela Metade...

No País dos Sonhos não há Rei. Há apenas duas rainhas, dançando livres entre as bacantes lindas e sedutoras, sob a brisa que você chamou.
É no País dos Sonhos que as coisas acontecem.

Apenas durma e não pense em nada, estamos cansadas de pensar, de pesar, de nos preocuparmos. Lá, somos apenas nós mesmas, sem os contratos silenciosos e olhares baixos. Deixe que fiquemos lá, permita-se um sonho de fato, mesmo que irreal. Mesmo que macio e dormente, no escuro quente do luar, dormir entre as náiades e as sílfides, sempre doces com suas canções lentas. Sempre perfumadas com seus sorrisos de lado e seus braços sempre abertos.


Durma,
vamos para o País do Sonho,
onde as coisas acontecem...

29/09/2007

Duas de mim (Sempre Irônicas)


Como eu gostaria que as coisas acotecessem de uma forma mais simples, como a água simplesmente correndo num rio, que não houvessem tantas curvas no leito, tantas pedras... Que minha cabeça fosse menos complexa e que tudo parasse de se misturar e confundir. Eu vivo na divisa entre o rio e o mar. Eu deságuo no oceano, eu sou o oceano. Eu me sinto fechada pra tudo o mais e ao mesmo tempo aberta e infinita no horizonte de maresia.

Às vezes eu tento parecer coerente, ao menos uma vez. Às vezes eu consigo, mas na maioria das vezes eu sou apenas uma criança falando sem parar as coisas que me aparecem na cabeça, de uma forma absolutamente vazia e nem sempre inocente.
Às vezes eu tento parecer incoerente, ao menos uma vez. Às vezes eu consigo, mas na maioria das vezes eu sou apenas uma velha medindo o que dizer, pensando e rancorizando tudo o mais, sempre desconfiada, protegendo-se da própria sombra, da própria voz, mas nem sempre maliciosa.

É como se eu visse de duas formas tudo. Como duas loucas sempre rindo de mim no final. Enxergar com ciúmes e inveja, tudo o que me rodeia (ela?). Algo como "por que eu não sou assim?" ou "por que (ela) é sempre assim?". São meus dois lados, o lado que morre de um ciúmes estúpido sem fundamento e o outro que morre de uma inveja absurda, com uma raiva represada e um desprezo angustiante. Ambos errados, errôneos, imperfeitos, calejados e cansados. Como se sempre ocorresse a mesma pergunta com a mesma entonação chorosa: "Por que eu?"
Maldita pena de mim mesma.


E eu gostaria de ter o mesmo talendo, o mesmo perfume, o mesmo encantamento, as mesmas roupas, o mesmo azar (!), as mesmas companhias, o mesmo mistério, a mesma pele, a mesma dor, o mesmo passado, e a fala e o gosto e tudo o mais.



"Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser."
Ricardo Reis

22/09/2007

Dogma-mor

Como a essência que me persegue desde muito pequena, ao nunca querer ficar apenas por cima, nas aparências, eu sempre perguntava o porquê das coisas. Ao ouvir um "Porque sim, Jéssica!" sempre ficava muito chateada. Isso não era resposta, ora bolas! As coisas não são simplesmente como são e pronto... Elas têm um porquê!
Quando me perguntavam o porque das coisas tentei nunca falar "Porque sim!". Eu sempre fui além, eu sempre dei mais, mais como algo que eu gostasse (e inconscientemente esperasse) que fizessem comigo do que por realmente saber o porquê de tudo. Quando eu não sabia responder (e isso acontece o tempo inteiro), simplesmente dizia "Não sei" e então eu perguntava pra quem sabia, fossem livros ou pessoas. E é assim até hoje.
Eu não sou humana o suficiente pra um simples "Não pergunte, apenas aceite". Nunca funcionou comigo. Nem acho que vá funcionar tão cedo.
As pessoas me conhecem bem quando querem, nada lhes é escondido, nunca. Eu sei, pode ser um grande erro que eu vá pagar mais na frente, ser assim tão exposta, mas... Não consigo ser diferente.
E às vezes eu sinto que exijo demais das pessoas. Elas não têm o dever de expor suas vidas à mim. E nem eu tenho o direito de esperar demais de ninguém. Todos saem machucados quando a troca não é recíproca e disso eu sei bem. É como se eu estivesse nua andando por uma rua em que todos estivessem muito bem vestidos e tapados, e exigisse que todos também estivessem nus como eu.
Doce loucura. E um arzinho batendo nas partes baixas.


O grande problema agora, é aceitar que nem todos são assim, sem perguntar o porquê.

19/09/2007

Seja bem vinda ao Vôo de Sua Vida


- Sente-se e mantenham-se calmos. Passaremos agora por uma zona densa de brigas e discussões com possibilidade de ofensas graves e perda de respeito mútuo. Nada do que qualquer um dos passageiros disser (que seja abaixo da racionalidade) nesse período será levado em conta, devido à tensão que é estar em um vôo potencialmente mortal. Tentem permanecer em seus assentos, visto que quanto menos quedas e ferimentos, melhor. Em breve deveremos estar de volta à nossa rotina normal de vôo, contando com o menor número de mortos possível. Obrigada :]

Tá. Eu gostaria de ser avisada sobre possíveis turbulências na minha vida.

15/09/2007

Da Carta Escrita que Nunca Foi Remetida

Eu não espero que algum de vocês leia. Sinceramente, só me importa que isso conste nos autos quando eu for julgada antes de ir parar no inferno.
E espero que isso fique aqui por muito tempo, mais como um lembrete a mim mesma (mais um?), do que como uma carta que nunca foi realmente escrita ou remetida.
Que isso fique aqui como uma prece,
vinda da minha mais profunda parte insensata
.
("...)
Que todos os dias sejam dias bons e claros para vocês dois.
Que vocês aproveitem todo o tempo que têm juntos e que não deixem um do outro, porque são opostos, mas iguais.
Não deixem ninguém invadi-los e parem de invadir-se. Acreditem cegos um no outro, como eu não consegui acreditar, como eu me recusei a ter apenas uma meia verdade, e que cansei de apenas acreditar e nada mais. Tornem-se cativos um do outro e zelem sempre! Não façam como eu, que um dia fui inteira coração, que inteira palpitei, me precipitei, que fiz papel de boba por tanto tempo, tanto tempo... Que por tanto tempo sofri sozinha por estar errada, que por tantas vezes me contestei e perdi o sono e lamentei por não ter feito diferente.
Eu, que não soube me controlar, que não soube represar tudo aquilo, não mais. Haveria de estourar um dia (eu me lembro de ter profetizado isso), e estourou. Tudo se desfez e a minha voz mudou e meus olhos escureceram, e então tudo saiu do meu alcance. E eu senti como se não tocasse no chão... Eu ouvia aquele riso na minha cabeça e meu rosto vermelho doía de vergonha. Tudo o que eu sinto é intenso, sempre, e vocês sabem disso.
Eu corri pro escuro porque era como se eu não tivesse pálpebras (e afinal, é sempre assim!), como se eu visse e vivesse tudo de novo (e era real, eu via!), repetindo-se milhares e milhares de vezes, e o som... E a sensação... Eu queria fechar meus olhos, mas minha mente tornava a lembrança tão próxima, tão próxima! Eu via! Eu vi! Eu não pude controlar tudo aquilo... Eu não consegui...

Por favor, eu peço. Fiquem juntos, e que tudo isso sirva para aproximar vocês dois, porque pra mim acabou. Eu sempre quis um motivo real pra me afastar, porque sim, eu sempre acho que as pessoas são melhores sem mim. E eu tenho um talento nato pra estragar as coisas! É uma coisa que vem de dentro.
E sou dramática, fazer o quê? Se vocês me conheceram sendo de outro jeito, que atirem a primeira pedra!
E se hoje eu vivo uma mentira, andando como um fantasma infeliz em um mundo construído sob as ruínas da minha fortaleza, eu só estou fazendo a minha parte. Sejam boas crianças, façam as suas.

Não pensem que não dói, porque eu os amo, mas acreditem, vai ser melhor assim.
Eu sempre fui o centro, a cola, um ponto de equilíbrio (errôneo) entre os dois mundos. Quase como o meio dos três. Eu sempre fui uma espécie de demônio mutável que transitava entre o Mundo Inconstante dos Mistérios Inomináveis e o Vale Liberto das Cores Vivas, mas sem nunca conseguir ter uma própria casa. Vocês não precisam mais de mim. E eu estou tentando não precisar mais de vocês.
Que me deixem construir minha própria Terra, minha própria história. O meu próprio lugar seguro, longe dos abraços e da atenção estúpida que eu (imatura) sempre precisei. Se me provaram que podem ser auto-suficientes, eu também posso, não posso?
Deixem que meu cais seja vazio, mas que seja meu, e que lá eu tenha certeza de estar sozinha e feliz. Mesmo que em mim, isso seja uma mentira. Um placebo pra minha mente esgotada, que eu recebo com um sorriso de alívio e os braços abertos.

Em mim não há mais raiva. A raiva não passou, mas não permaneceu.
A raiva não passou, mas tornou-se outra coisa. O que eu sinto é um enjôo, um enjôo denso, que me faz salivar grosso, um asco, uma mágoa indefinida, como uma pedra no estômago, com um gosto agre na boca. Um nojo de qualquer coisa, um desprezo absoluto, uma agonia imperfeita, um buraco mal-feito no meio da barriga, como se um tiro de canhão me tivesse atravessado e eu sentisse o gosto e o cheiro da pólvora ainda morna.
Paciência se eu não consigo sobreviver assim, mas é quase insuportável pra mim. Me desculpem, mas não dá mais.

Minha vó foi quem me ensinou, desde quando eu era muito pequena, uma das coisas mais verdadeiras que eu provei na vida (e que eu ainda não digeri nas minhas aulas de filosofia barata, vinda de quem tem experiência no assunto): Ninguém é insubstituível. Nem vocês, nem eu.
"- Minha filha... Sempre haverá alguém mais inteligente, mais bonita, mais amável e mais amiga do que tu. Não te espanta o dia em que tu for esquecida, porque tu não é a melhor ou a única, e nunca vai ser!"
As pessoas são substituídas todos os dias. Todos os dias. Às vezes mais de uma vez. E vocês deveriam aceitar isso, porque foi provado, e não é privilégio de alguns, mas de todos.

Talvez eu esteja errada sobre tudo isso. Talvez eu acorde daqui a cinco minutos e veja vocês dois ao meu lado, assustados porque não conseguiam me acordar de um pesadelo.
Talvez eu ainda sinta saudade de vocês quando estiver bem velhinha, ou que reveja tudo o que passou um segundo antes de morrer e que me arrependa amargamente de não ter conseguido abraçá-los e amá-los e aproveitá-los tanto quanto fora possível.
Talvez a gente se encontre mais na frente, em uma outra vida, quem sabe, como eu acho que a gente já tenha se encontrado por aí outras vezes.
Quem sabe tudo isso nunca tenha existido... Quem sabe a gente faz parte de um jogo idiota em que as peças sejam movidas por um grande macaco de cérebro atrofiado.

E pela enésima vez eu ouço (vindo sempre de pessoas que julgam me conhecer): "Tu te preocupa demais com tudo."
Desculpa. Eu não sei não me preocupar demais.

E eu prefiro acreditar em uma mentira possível, do que em um sonho irrealizável.
Eu sou pequena em mim, perdida e sozinha. E sinceramente? Eu só jogo os dados porque o jogo pra mim já acabou, e não há mais perdas ou danos.
Eu perdi.
(...")

12/09/2007

Take your candy back


Reduzo-me a quase nada e refaço a história.
Releio o livro e desfaço-me das intruções para ter a minha própria versão dos fatos.
Nada me impede. Nada me impede agora.


Grito, giro, pulo elevando os braços ao céu de diamantes negros...
Nunca o meu carinho foi tão terno.
Eu nunca fui tão mais que eu. Eu sou a minha própria caçadora, minha própria presa.
Agora nada me impede, eu sou livre de mim, livre em mim.


Refeita agora, daquele baque surdo que destruiu minha fortaleza;
Esquecida agora, das cicatrizes de um coração mal-feito;
Desfeita agora, do movimento frenético dos olhos dentro das órbitas...

Eu sou minha.



"You're on your own now
We won't save you
Your rescue-squad
Is too exhausted

And if you complain once more
You'll meet an army of me"

(Army of me - Björk)

10/09/2007

Doce Teimosia

Que me digam que eu não devo ser teimosa assim, pra ver o que acontece. Deço do salto e rodo a baiana. Chega de ficar quieta. Cansei dessa vida mesquinha.
Ninguém tem o direito de me dizer o que fazer, ou com quem falar, ou o que falar. Não mais. Estou cansada de tolerar e relevar sempre. Agora chega, de verdade.
Estou afim de provar pra mim mesma que posso conviver com rancor, com uma raiva estúpida que dá e passa, que arrasa tudo e então se extingüe como se nunca tivesse existido. Uma raiva rancorosa que às vezes se mostra muito necessária, pra me lembrar das cicatrizes, que às vezes me provocam amnésia. Uma amnésia bem conveniente para alguns. Uma amnésia que me deixa vulnerável e tola, como nunca.
Agora eu estou vacinada, baby. Ninguém mais passa por cima de mim.

É orgulho sim. Eu sei.
E estou aprendendo a gostar.

Give myself back.

05/09/2007

Luz morna e Saudosismo

A casa vazia, a poeira sobre os móveis. Ela pega sua xícara de chá e bebe lentamente ao olhar através da vidraça antiga o pobre jardim abandonado. Há muito que não ia àquela casa, tão cheia de vida quando ainda havia amor. Quando ainda havia alguém.
Lembrava-se de quando a casa ainda lhe parecia gigantesca sob os pezinhos em sapatos pequeninos. Lembrava-se do cheiro do leite quente que a ama lhe levava toda manhã, lembrava-se da sensação de andar pelo jardim ao anoitecer e de como lhe assustava o fato de poder perder-se naquela imensidão. Lembrava-se saudosa das conversas solitárias com as flores da janela, de como ela lhes segredava histórias inventadas, de como elas pareciam entender seus sussurros de criança. Lembrava-se da água cristalina jorrando farta da fonte de mármore, e de como gostava de observá-la da janela do quarto. Sentia saudades do calor da lareira e de como os cães deitavam-se aos pés de seu pai quando ele lia seus grossos livros de filosofia na poltrona alta. Sentia saudade do perfume dos cabelos longos de sua mãe e de como ela se arrumava elegantemente antes de cada jantar, sempre vaidosa.

Agora tudo se fora.

Já não havia mais ninguém lá.
Nem o sol do fim da tarde penetrando as janelas altas traziam algum calor àquele lugar.
Uma casa vazia. E agora era dela.

E ela, saudosa dos tempos de criança, se dava a chance de ser feliz sozinha novamente, como fora há muito tempo.Ela e ela mesma, nos seus sapatos pequeninos e seus sussurros de criança.

31/08/2007

Bomba-Relógio

Primeiro a respiração fica levemente acelerada, o coração bate mais rápido, os pensamentos se embolam. As mãos se crispam, a boca fica seca e tensa. Os músculos da mandíbula pressionam os dentes um contra os outros e os lábios e mãos ficam dormentes. Você ri nervosamente, só podem estar brincando de não te levarem à sério. Você avisa. Um risinho debochado desperta a segunda fase.



Você avisa de novo.


Ri nervosamente. De novo.




Na segunda fase você respira profundamente, os olhos se crispam, as mãos já doem, você já está o dobro do tamanho, é a raiva, é a raiva...


Você já começa a ofender pausadamente. A voz já é pesada e não parece sua, vem de dentro, vem carregada de mágoa. As pessoas te olham com medo. Elas tem razão em temer. Em seguida surgem a ironia e a acidez que queimam você por dentro e a dor já chega a ser física. Você não avisa mais, só ameaça. Uma ameaça, uma única vez. Entra a terceira fase: O Modo de Segurança.




No modo de segurança você desliga a raiva por um pequeno período de tempo, suficiente para que ela, ao menor sinal alheio, se apague de vez ou exploda. Seu pensamento entra em uma espécie de estado de recepção. Você ri e avisa amigavelmente. Se você pegar qualquer coisa na mão, ela vai se quebrar. Qualquer movimento brusco pode arrancar o fio vermelho do lugar e isso sim, seria uma tragédia. Qualquer palavra pode ser interpretada como um disparo, porque você já está com o dedo no gatilho. Eles não vêem que você está armada?




Tensão no ar pesado.
















Aquele maldito risinho debochado de novo...

Você fica cega de repente.




E tudo vai pelos ares.








Parabéns, Jess. Você conseguiu.

27/08/2007

Hiper-Expressive

Às vezes eu olho a minha cara amassada no espelho e ela me parece ser de outra pessoa, não minha. E eu descubro novas coisas estranhas sobre mim todos os dias, principalmente como eu posso ser enfática em querer que alguém morra só levantando uma das sobrancelhas. É como se tudo, eu disse TUDO o que eu pensasse ou sentisse fosse saltar dos meus olhos em direção às pessoas... É como andar nua!
E o meu olhar não é de jeito nenhum algo doce ou inocente ou amoroso (saudades da minha avó, quando gostava dos meus olhos de criança), ou ao menos, não mais... Na verdade é como se fossem amedrontadores, irônicos, ácidos e lacônicos até pra mim mesma.
E eu tenho medo de fitar meus olhos escuros e comuns no espelho de novo.
Os filhos independentes de uma mãe em nada única, em tudo comum.
Herdeiros das coisas que viram e leram, mas que prestes a abandonar meu comando. Ou tomá-lo de mim.
Medo de como eles podem ser próprios, e como dois, individuais de mim.
De como deles escorre ódio latente saindo como lágrimas de lava, atropelando as pessoas (que às vezes não tem culpa de nada), passando por cima do meu próprio controle, deformando meu rosto e meu poder das minhas expressões.
E o que eu quero sempre se perde! Nunca fica claro, nunca!

E óbvio, tudo volta.
Tudo volta.
Perdido, mas volta.
Confuso, mas volta.
Distorcido.


Mas volta.


Minha cara nem sempre funciona. Na verdade, funcionaria bem, se eu soubesse como usá-la.
Alguém aí tem um manual?
Ou uma máscara?

20/08/2007

Caixa Selada

Sinto falta do prazer de colocar as meias finas naquele ritual de enrolá-las delicadamente e escorregá-las por sobre a pele macia da perna longa.
Sinto falta de me olhar no espelho e sentir orgulho da roupa que escolhi pra sair, com aquele sorriso de lado de quem sabe que vai chamar atenção. De quem quer chamar atenção.


Onde se escondeu tudo isso? Onde está aquela sensualidade encarnada, vermelha, latente que vivia em mim?
Aquela sensualidade dos seios quentes de menina nas curvas da mulher prematuramente concebida nas unhas pintadas de vermelho?

Adormecida agora, embaixo de grossos panos pretos, repousando branca e cálida, sentindo-se intocada e intocável, inocente e nunca revelada. Mas que eu sinto pra sempre queimando, agora em uma caixa bem guardada, congelada, no âmago do meu ser em constante transformação.
Esperando pacientemente pra me arrebatar novamente, na próxima fase da minha lua, no próximo toque alheio vindo do escuro, para me incendiar os dedos, para abrir a caixa selada, trancada, amarrada, numa tentativa de ser controlada em mim. Para reacender os meus olhares baixos, pra deixar minha boca seca, sedenta, pra me tirar de mim, pra me cegar a visão e me guiar as mãos tateando no escuro. Pra me calar a voz, pra me coçar o estômago, pra me despertar de mim mesma.

E eu espero ansiosamente por ela, a minha viciante feminilidade perdida.

19/08/2007

Saudade de tempos mais simples

Saudade de quando eu era menos complexa, de quando todas as coisas me fascinavam de uma mesma forma inocente e bela, de quando não havia tantos sentimentos, bons ou ruins.
Saudade de quando as coisas ao meu redor exerciam aquele entorpecimento hipnotizador de parecerem realmente novas a cada dia.
Saudade de acreditar em um futuro bom, ou simplesmente em um futuro meu, sem viver implorando atenção, implodindo meu interior, despedindo meu orgulho, expulsando minha estima por mim mesma, de mim por hoje e pra sempre.
Saudade dos tempos em que hoje eu acredito terem sido reais ou o mais perto de uma lembrança palpável que eu possa ter. Éramos três. Os Três. Plenos, irmãos, reais, íntimos, próximos, abertos, unidos.




Mas no fim eu sempre acabo me ferrando.
Por mais surpreendentemente renovado e maduro que tudo possa parecer.



Me faz falta ter confiança plena nas pessoas, mas sinceramente?
Nunca mais.

17/08/2007

Influenza, Dor nas Costas e Filosofia Barata

Acordei em meio àquele emaranhado de cobertores macios e perfumados, com uma vontade de não levantar. O despertador já estava com uma rachadura no visor de tanto levar porradas gratuítas nas manhãs de mau-humor. De tanta violência nem mais fazia aquele barulhinho irritante tão vigorosamente. Resolveu definitivamente fazer greve de não me atrasar, já que os tapas de mão pesada lhe diziam "Só mais cinco minutinhos...".
Olhei para o teto azulado com os primeiros raios discretos da manhã sem sol e resolvi que iria adoecer aquele dia.
Levantei-me em uma ar de 12ºC no meu quarto polar, coloquei os pés sem meias no chão de gelo e impliquei-me o dia inteiro a pegar uma boa gripe.
Saí sem casaco pesado, peguei chuva e vento na rua. Como trabalho em uma clínica médica, não foi difícil achar algum idoso com ares de múmia e encatarrado de tuberculose para dar um efusivo abraço apertado e simpático.
Cheguei em casa, tomei banho e lavei os cabelos, fui umas duas ou três vezes na rua para me certificar que pegaria bastante frio e vento.
Deitei ainda de cabelos molhados na umidade quente do travesseiro perfumado e me entreguei à mãe Influenza para acordar de nariz congestionado, dor no corpo, dores de cabeça, tosse e febre. Sonhei com um Hospital atopetado de gente com doenças infecciosas, com as quais eu conversava e abraçava. A Sinfonia dava o tom através dos pigarros, tosses e espirros. Que maravilha!!!

Hoje faz mais ou menos quatro dias que me entreguei à tarefa de me sentir humana na sua simplicidade.
* Diagnóstico médico (dos familiares com seus chás milagrosos que não possuem registro na Secrearia de Saúde ou Inspeção Sanitária):

- Sinuzite;
- Dor de cabeça;
- Dor no corpo;
- Estado febril;
- Espirros;
- Tosse.

Ou seja:
GRIPE!

Não vou fazer esforço algum pra me curar, porque preciso disso, preciso dessa doença.
Preciso me lembrar que as coisas são perigosas em sua totalidade, usando meus olhos reais. Os olhos da realidade dura e ríspida, que nos mostram o quanto somos frágeis.
Preciso sentir dor, preciso sentir essa dor. Preciso porque senão esqueço que sou de carne e osso, que não sou só coração, mas razão e corpo físico, real e perecível.
Preciso disso tudo porque senão esqueço quem sou.
Esqueço que sou frágil.
Esqueço que sou humana.

09/08/2007

Inocência em tese

Que seja sempre assim, o amor que apenas flui, sem cobranças, internas ou exernas.
Que seja sempre assim, eterno e intocável, uma lembrança plastificada exposta na estante.
Que seja sempre assim, a tatuagem no lugar invisível, interno, pra sempre a marca e que só haja a dor na memória distante, nada presente.
Que haja sempre a paixão incontida, mas inocente, o amor submisso, mas saudável.
Que nunca haja a perfeição infinita, mas a durabilidade etérea dos momentos especiais.
Que se for chorar, que seja de felicidade.
Que se for amar, que seja sem medo.

05/08/2007

Os Embaços de Sábado à Noite...

Eu me escorei no balcão do bar cheio de gente com um copo de vinho vagabundo em uma das mãos. A minha famigerada ex-futura acompanhante já havia ido pra casa ha algum tempo, com um quase coma alcoólico. Frio glacial, companhias duvidáveis, bebida ruim, música pior. "Maldita noite que eu escolhi pra sair de casa".
Eu larguei minha cabeça cansada na outra mão enquanto olhava diretamente pro fundo do copo quase vazio. "Nunca mais saio de casa dependendo dos outros". Olhei panoramicamente para o bar. Alguns jogando sinuca, bebendo cervejas sem gás e que só não estavam quentes porque o frio não deixava. Alguns fumavam cigarros baratos, mentolados, fedidos. Pessoas pagando de modernas dançavam (?) ao som de Beattles. "Muito moderno isso, muito moderno". Fechei a jaqueta com as mãos quase congeladas. "Vinho miserável que não pega". Eu queria aquele calorzinho nos ombros, aquela leve tontura das bebidas fortes e, no entanto, tudo era tédio.
Ele me olhava quando eu o percebi. Bonito, razoavelmente bem vestido, copo de cerveja na mão. Atravessou o salão pequeno cheio de pessoas na minha direção. Escorou-se muito estilosamente no balcão ao meu lado e piscou demoradamente antes de tomar ar.
- E aí gãta... Tah acumpanhadã?
Quase vomitei com o bafo ébrio que vinha dele.
- Tô. - Definitivamente, qualquer coisa era melhor que a companhia daquilo.
- Põ, que penah... A gentch pudia curti e tal... - Quase caiu em cima de mim, trêbado.
- Sem chance... Vai lá ó. - apontei pra uma loira chapada escorada no canto da parede. - Ouvi dizer que ela tá afim de um cara que nem tu. Vai lá tigrão, pega a loiraça. - Pisquei pra ele. Ele riu aquele riso insano, típico de longas noites etílicas. Foi trôpego em direção à coitada. Caiu no meio do caminho próximo à algumas cadeiras de plástico e por lá ficou, atirado.
Peguei minha bolsa tentada a ir embora, olhei em volta. Tédio. Três horas da manhã, não havia mais carona, não tinha dinheiro pro táxi, não havia ônibus. De repente me senti tentada a ligar pro meu pai ir me buscar. Me senti tentada pela voz dele gritando no meu ouvido por ter feito ele acordar naquele frio, àquela hora só pra ir me buscar. Pelo ar quente de dentro do carro. Pelo frio da minha cama. Pelo cheiro de roupa lavada do meu pijama do Mickey contrastando com o fedor de cigarros dos meu cabelos. Peguei o telefone, liguei, falei, ouvi. Estava feito, agora era esperar.
Quase virei picolé esperando ele chegar. Ele fez aquilo de propósito. Esperar. Ele sabe que eu odeio esperar. Entrei no carro e ele nem me olhou.
-Desculpa pai, juro que não foi culpa minha... - Eu parecia uma criança de 5 anos tentando explicar o porquê de derrubar a tigela do pudim de domingo no chão.
Ele dirigiu até em casa sem falar nada. Desci do carro, entrei na casa morna e silenciosa, minha mãe estava acordada.
- Que que houve?
- Esses teus amigos hein... - Ele entrou logo atrás de mim, trancando a porta. - Sempre te deixando na mão...
Foram dormir. Eu fui pro meu quarto, tirei a roupa, coloquei o pijama, arrumei a cama para dormir. Deitei insone e gelada entre os cobertores àsperos. Eu era uma massa disforme de aparência irônica abaixo de zero.


Definitivamente nunca mais saio de casa dependendo dos outros.

03/08/2007

"Cuja chama nunca apaga"

De todas as coisas e das lembranças, e dos ensinamentos, que seja tudo o que cremos, que seja irreal e palpável, que há o que de bom imaginávamos, que não haja mais dor, não mais.
Que comigo fique a lembrança de tempos bons, de sensações boas, de um saudosismo alegre, de que não haja a imagem da não-vida, mas sempre a do sorriso.
Que mesmo que não tenha havido o conhecimento pleno, houve a sensação do eterno. A beleza da não-intimidade pra sempre, apenas a parte boa, das lutas sempre vencidas, das histórias sobre a luz da lua quente.
Não houve tempo de dar adeus, afinal, alguma vez há?
Não sinto tristeza, apenas um saudosismo terno. Vai em paz, pra onde quer que seja. Se os Deuses me permitirem a gente tão logo se esbarra...



"É tão estranho
Os bons morrem antes
Me lembro de você
E de tanta gente que se foi
Cedo demais
E cedo demais
Eu aprendi a ter tudo o que sempre quis
Só não aprendi a perder
E eu, que tive um começo feliz
Do resto não sei dizer."

(Legião Urbana -
Love in the Afternoon)

28/07/2007

Algumas coisas nunca mudam


Aquela coleguinha do colégio, a esquisita, com a qual ninguém conversava muito, me puxou um dia pro banheiro das meninas. Me segurou pelos ombros e me deu um longo selinho úmido e desajeitado nos lábios. Largou meus braços e ficou me olhando com ar de espectativa. Eu, muito estarrecida, limpei a boca com o punho do uniforme e disse um sonoro "Eca!". Ela saiu correndo imediatamente do banheiro, balançando a saia de pregas azul marinho e os cabelos cacheados.
"Odeio ela", eu pensei naquele primeiro momento, parada dentro do banheiro vazio de porta entreaberta, olhando para baixo, meio desolada, sem saber como seria minha vida dali pra frente.
Fui em direção à sala de aulas pra pegar meus cadernos e lápis-de-cor antes de ir embora. Ela estava lá, já saindo. Passou por mim, agarrada nos cadernos, batendo com seu ombro no meu, me empurrando pra trás, muito chorosa e magoada, perdendo-se pequena na imensidão dos alunos no pátio e entre os barulhos dos adolescentes tagarelas. E eu, sem rumo, não sabia se ia atrás dela ou se deixava ela sozinha. Fiquei ali, sem pensar em nada, olhando ela ir embora pra não sei onde. O que tinha passado pela cabeça dela?
Ela não apareceu na aula durante algum tempo. Todos os dias eu sentava perto da porta, pra ver se enxergava ela entrando através dos portões da escola. Esticava o pescoço a cada barulho do guarda abrindo o cadeado, esperançosa que fosse ela. Não que eu tivesse gostado daquilo, mas, eu não sei, havia algo de errado...
"Odeio ela", pensava repetidamente pra mim mesma. Às vezes entrava no banheiro e me trancava lá dentro me olhando no espelho rachado, com vergonha de estar com saudades daquela garota estranha.
Quando ela voltou a freqüentar as aulas, sempre me evitava no recreio e nunca mais voltou a falar comigo. Mal me olhava de lado, cada vez mais isolada de todo mundo.
Anos se passaram e eu um dia encontrei ela andando sozinha pela rua movimentada, de mãos no bolso do casaco longo, os cabelos ainda cacheados. Passou por mim como um arrepio nas costas. Não me viu, ou fez que não me viu, não sei bem. Eu parei ali e fiquei olhando ela se perder de novo na multidão, ainda pequena e muito apressada. O perfume dos cabelos dela ficou pra trás, me inebriando levemente naquele ar úmido de inverno intenso.
Dei meia volta decidida a seguir caminho, ainda meio tonta pela presença rápida dela, e fui pro conforto artificial da minha casa quente e minha vida fria.
"Odeio ela", ainda pensei no caminho de volta, olhando pra baixo, sem saber se ia atrás dela ou se a deixava sozinha...








Algumas coisas definitivamente nunca mudam.

25/07/2007

Like a Dreamer


Por um momento eu quase acreditei que ela estava lá porque me amava. Ela pegou minha mão, sorriu muito espontaneamente e me puxou para a rua.
-Vamos! A gente vai chegar atrasados!
E eu com uma cara de idiota, olhando pra ela, linda naquela roupa acinzentada, combinando com seus olhos. A Paula não me amava, eu sabia disso. Ela me puxou através da chuva até o ponto de táxi. Uma chuva fria e fina caía insistentemente. Eu não queria ir.
- Vem, vamos pra casa, eles nem vão notar que a gente não foi.
Ela me olhou com ar de reprovação por um momento. A Paula gostava muito da aniversariante. Eu gostava muito da Paula, gostava muito da minha cama e gostava muito mais da Paula, na minha cama. Eu caprichei no beiço pra convencer ela.
- Tudo bem, foda-se a pizzaria, vamos ficar em casa e assistir um filme.
Ela era linda. Não me importava que não fosse minha, mas naquele momento ela era. Voltamos pra minha casa, tiramos os calçados molhados. Ela queria tomar café. Ela adorava café e eu adorava o café dela. Fui tomar um banho quente, eu estava congelando!
- O café tá pronto. - Ela parou na porta do banheiro.
Ela segurava a xícara quente com as duas mãos, próxima ao rosto, emoldurando-o pelo vapor do café perfumado. Eu abri o box. Ela me olhou com um sorriso.
- O café pode esperar...
Ela colocou a xícara na mesa próxima, tirou a roupa muito despreocupadamente, soltou os cabelos alaranjados e entrou no banho comigo. Eu a amava. Sim... E a queria. Muito.
A pele macia do rosto dela roçando no meu queixo, a proximidade íntima com que ela me olhava, o vapor da àgua quente confortando nossos corpos... Aquilo tudo me parecia bom demais pra ser verdade... E era.
A minha cabeça era uma profusão de pensamentos incessantes, teorias incabíveis e verdades inquestionáveis. Pra mim as coisas nunca funcionavam como deveriam ou sempre funcionavam ao contrário de tudo o que eu sempre planejei. Eu não queria que aquilo acabasse. Eu queria que ela fosse minha pra sempre. Meu medo era de acordar de repente, e então ela ser só um sonho.
Fomos olhar um filme depois do banho. Um filme desses da Sandra Bulock em que ela sempre acaba se metedo em confusões amorosas já muito manjadas. Então, lá pelas tantas, a Paula me olhou como se fosse dizer algo qualquer. Tomou ar.
- Eu te amo.
E eu fiquei olhando pra ela, ali sentada do meu lado, com aquelas roupas muito largas que eu tinha lhe emprestado, tão fora de contexto, distoando tanto de todo o resto, e ela se virou pra continuar olhando o filme e comendo as pipocas.

E eu ri...

Porque eu decididamente ia acordar a qualquer instante...

22/07/2007

Conto de Taxista

Ela entrou chorosa no meu táxi vestida com aquele vestido de noiva empoeirado na barra, a maquiagem escorrida, o véu desfeito em pedaços. Tinha se atirado na frente do meu carro e eu assustado, quase não tive como frear. Pensei até por um momento que fosse a mensageira do Sete Peles me buscando pro inferno, mas quando ela entrou no banco de trás e disse "Segue em frente moço..." eu me senti mais aliviado. Respirei fundo, engatei a primeira.
- Pra onde vai a moça? - Olhei pelo retrovisor.
Ela, com a cabeça baixa, alisava o tecido do vestido amassado com uma mão e com a outra segurava algo que eu não consegui enxergar direito. "Caramba, eu tô ficando velho", pensei. Estava desconsolada a florzinha, tão bonita que era, mesmo escangalhada daquele jeito.
- Me leva pro inferno. - Limpou a lágrima da bochecha.
Eu diminuí a marcha. Quase deixei a caixa de câmbio pra trás, o carro estremeceu.
- Como é que é?
Ela sorriu pro nada por um momento, depois pro retrovisor. Se aproximou do meu banco, olhou pra frente, depois pra mim. E eu tentando me manter firme no trânsito com aquela coisinha linda me olhando tão desolada.
- Entra naquela rua.
- Mas é um beco moça!
- Eu sei o que é. - Ela levantou sutilmente a voz. - Só entra na rua.
No fundo da rua havia um terreno baldio muito isolado de todo o resto, onde ela me mandou parar.
- Me deixa aqui e vai embora. Se alguém perguntar por mim, diz que sei lá, que eu fui pra Sibéria passar um tempo, mas que volto pra dar notícias.
- Como é que é?
Mas ela já tinha saído do táxi e ido em direção ao terreno. E eu olhando ela se perder naquele vazio, tão cheia de graça, parecendo uma fada naquele vestido.
Lá pelas tantas ela parou, sacou uma arma não sei daonde e atirou na própria cabeça. E eu fiquei parado lá, olhando a sombra branca dela jogada no chão sujo. Dei a ré muito rápido e tentei achar a rua na qual ela tinha embarcado. Encontrei uma igreja muito próxima, já tomada de policiais. Desci. Não foi para o meu espanto que encontro mais três pessoas mortas no interior da igreja e todo mundo ainda muito apavorado. A senhora do meu lado estava inconsolável com a história.
- Pobrezinha da bichinha, descobriu que o futuro marido a traía com a melhor amiga. Pegou a pistola do segurança, matou o noivo, a amiga e o padre que havia apresentado os dois e que se meteu na frente da arma. Que Deus a proteja. - E fez o sinal da cruz inclinando a cabeça pro lado e fechando os olhos em sinal de pesar profundo.
- E a dona sabe pra onde ela foi?
- Sei não.
Reticências, todo mundo com aquela cara horrível de tristeza, gente berrando, alguém tossindo no fundo, algum cachorro sarnento latindo na rua, uma criança catarrenta correndo no meio daquilo tudo. O racunho do inferno. Resolvo falar alguma coisa antes de sair correndo dali:
- Não sei também, mas dizem que a pobrezinha foi pra uma tal de Sibéria, sabe... Deve ser alguma prima, ou coisa assim. - E faço aquela cara de quem comenta sobre o tempo. Tiro o boné que eu ganhei do deputado e coloco no peito em sinal de respeito. Tadinha da bichinha.
Entro no táxi e me decepciono comigo mesmo. Eu nem cheguei a marcar quanto me custou a corrida! "Cara, acho que tô realmente ficando velho", ainda cheguei a pensar antes de me mandar pra casa.

21/07/2007

Balada do Cansaço Inegável

Cansada de todo mundo.
Cansada de seus mundos pouco inteligentes e de seus egoísmos estúpidos.
Cansada de ter que sempre tomar as decisões mais difíceis.
De sempre ser a que abre mão das coisas.
Cansada de me sentir sempre culpada pelas coisas idiotas que acontecem nessa minha existência medíocre.
Cansada dessa vala que se tornou minha vida.
Desse mundo pequeno e limitado em que insisto afundar.
Dessa gente que se atravanca na minha frente, que me faz perder tempo me impondo cada vez mais pedras no caminho.
Cansada de ser sempre a filha ingrata ou a prima exemplar.
Dessa minha previsibilidade.
De sempre ter medo de tudo.

Ainda morro nesse grande depósito fétido de humanos inúteis.

15/07/2007

Josefine

Ele tão doce, beijou os lábios selados dela, castos de inocência. Segurou seus ombros, olhou para baixo em direção aos seus olhos e esboçou um sorriso sem vontade.

"- Eu gostaria muito de te amar de verdade, mas não consigo."
Josefine já sabia, mas mesmo assim doía ainda mais quando vinha da boca dele. Ela o abraçou tão forte que seu rosto doía da força que fazia pra não chorar. E ele lhe parecia maior do que ela, ou ela que se sentia menor, não sabia bem. Ela se agarrava tão forte ao seu colete cinza que sentia as unhas perfurarem a pele através da roupa dele. Ela mal respirava, não queria que ele fosse embora.

"- Eu gostaria que tu soubesses... Que eu tentei... De verdade, eu tentei."

Ele pesava as palavras pra não lhe machucar, ela o odiava por isso. Talvez fosse mais fácil pra Josefine se ele não fosse tão gentil até o final.

"- Não me odeie, tu fostes minha última tentativa, minha última aposta... Talvez em mim mesmo, talvez na própria sorte... Eu não posso continuar usando-te desse jeito, é injusto... É injusto."

A cabeça de Josefine gritava, era puro desespero. Maldito idiota, era isso que ele era. Filho da mãe, ela o amava e ele sabia. Ele não a amava e sempre deixou isso muito claro. Ele sempre lhe foi fiel, nunca beijara outra, nunca tocara outra. Sua traição lhe era muito maior, porque ele era desleal. Amava outra pessoa em pensamento, despia-a em seus desejos noturnos. Josefine sentia inveja da outra, não ódio. Josefine a invejava! Muito...

"- É ela, não é? Ela te chamou e você vai como um cachorro a lamber-lhes os dedos de migalhas jogadas no chão... Maldita, levanta as saias pra uma dúzia de homens por noite naquele bordel fétido e ainda assim você acredita que ela é sua? Só sua?"

Ela não conseguia se controlar. Aquela meretriz ia lhe levar a dignidade! Ele era cego? Estúpido? DEUS! Ela precisava salvá-lo daquela infeliz! Maldita! MALDITA!

"- O que está fazendo?"

"- Eu te amo, não me odeie..."

Josefine sacou o punhal de dentro do criado-mudo e enfiou-lhe na barriga até sentir o peso dele sobre seu pulso. Os olhos dele se arregalaram para o nada, sua pupila dilatou-se levemente, sua mão roçou levemente o rosto dela. A mão dela se enxarcava cada vez mais com o sangue quente, pulsante, denso como mel. Ela escorou o corpo dele no dela, e ele, balbuciando alguma coisa ininteligível deu seu último suspiro cambaleante em direção ao chão.

"- Eu te amo muito, não me odeie..." - Ela sussurrou ao ouvido do corpo sem vida.

Josefine fechou os olhos dele e beijou-lhe as pálpebras. Levantou-se do chão empoeirado ainda suja de sangue e saiu porta afora em direção à zona boêmia do vilarejo. Entrou na tal taverna com todos os olhares voltados para ela. Olhou para os lados e avistou a vadia contorcendo-se semi-nua em cima de um senhor gordo, fedendo a charuto.

"- Maldita cortesã dos infernos!"

Agarrou-lhe os cabelos cacheados jogando-a no chão apontontando o punhal em direção à sua garganta.

"- Se sabes tantos truques, me diz: Sabes aparar punhal com a boca?"

O senhor gordo levantou-se rapidamente e lançou-se em cima da ameaçadora senhora suja de sangue.

"- Minha senhora, pelo amor de Deus! - Estás louca?"

Ela se contorcia de raiva, elevava seus pés do chão e se debatia feito uma criança mimada girando o punhal afiado no ar. O senhor segurava-a pelos pulsos fortemente.

"- Queimem a vadia! QUEIMEM! Ela não merece viver!"

"Pelo amor de Deus, minha senhora, o que esta senhorita lhe fez?"

O peito arfava de medo, as bochechas muito rubras e os olhos muito abertos evidenciavam o pavor com que a meretriz olhava a agora tresloucada Josefine.

"- Essa tal de Dominique matou meu esposo! VADIA! Queimem-na! Feiticeira!"

Josefine apontava o punhal para a mulher apavorada, tirando suas forças de todo o ódio que agora lhe dominava. Não havia cansaço. O senhor começou a lhe afrouxar os pulsos, não agüentava nem os próprios ossos velhos, quanto mais uma mulher tomada de raiva.

"- Mas Dominique... Dominique... Está morta..." - Disse a ruiva, que agora tentava recuperar-se do grande susto que tomara.

Josefine não acreditou na história digna de fazer crianças dormirem, torceu-se convulsivamente para trás e soltou um riso sonoro.

"- Mas eu ainda não a matei, aí está ela, a vadia dos cachos de fogo. A feiticeira francesa... Vadia..."

Ela se jogava papar os lados enlouquecidamente tentando sair de sua prisão humana. Soltou-se dos braços do homem, que com dois passos para trás, lhe olhou com ar de desconfiança. Josefine tirou o cabelo do rosto, sujando-o de sangue. Os olhos eram puro ódio. Os lábios eram riscos sem cor.

"- Dominique enforcou-se pela manhã..."- O senhor respirou forte e começou um acesso de tosse carregada.

"- Mas... Eles... Planejaram fugir esta noite..." - Ela ria nervosamente, não conseguia acreditar.

A dona da taverna abriu espaço entre as pessoas chocadas com a cena para ver o que estava acontecendo. A senhora velha, de aparência cansada e maquiagem borrada indignou-se:

"- Mas o que está havendo? Quem chama o nome da minha Dominique?"

A prostituta ruiva explicou-lhe o acontecido. A taverneira baixou os olhos e então levantou-os brilhantes de lágrima.

"- Como ousa sujar o nome da minha Dominique? - a senhora urrava entredentes. Já não lhe foi o suficiente ser desgraçada por um maldito que lhe jurava amor? Já não bastava ter sofrido por um amor impossível? Ainda tem que ter a cova morna remexida por uma maldita descontrolada que vem aqui para perturbar minha casa? Dominique apaixonou-se por esse boêmio maldito. E... Essa manhã... Encontrei-a... Deus... Ela se enforcou. Por causa dele! Deixou um bilhete... Mon petit Dominique..."

A senhora retirou o bilhete de dentro da manga do vestido vulgarmente puído. Atirou-o aos pés de Josefine, que mais parecia um animal acuado. Ela tensionou-se e pegou o bilhete amassado.







"Me desculpe meu amor, se lhe fiz mal. Siga sua vida, seja feliz com sua casta Josefine. Eu a invejo, porque ela é uma mulher de muita sorte. Ela lhe tem por inteiro, ela lhe tem como companheiro, como presença. Eu não tenho nada. Então... Seja feliz. Uma memória causa menos estrago do que uma saudade. Eu te amo muito, não me odeie."







Josefine saiu para a rua lamacenta, queria ar puro, queria morrer, queria matar. A cabeça rodava e ela gargalhava para a lua, insana, tresloucada. Girava com as mãos sujas erguidas em direção ao céu nublado de outono. Foi levada imediatamente para casa, uma senhora não podia ficar assim tão exposta! Foram chamados doutores de todos os lugares para curá-la do laconismo repentino e da letargia que a dominara. Finalmente foi levada para a Pensão Azul, lugar de loucos esquecidos, de onde desapareceu misteriosamente algum tempo depois. Nunca mais se ouviu falar do crime soturno da Rua Albuquerque. Josefine era mais uma anônima nas bocas fofoqueiras que aumentavam a história até que ela se parecesse um mito, e assim foi. A Lenda da Rua Albuquerque dizia-se. A doce virgem, enlouquecida de ciúme, sempre morre no final - afirmavam as velhas alcoviteiras.

"- Ainda bem que o espírito dessa moça libertou-se na graça de Deus, eu odiaria que ela nos perturbasse, ou que roubasse a fertilidade da terra..." - E todas faziam o sinal da cruz fervorosamente.









Dois anos depois, no vilarejo próximo comentava-se de uma nova e bela aquisição na taverna. Misteriosa, tinha os olhos brilhantes como duas pedras preciosas. Dominique, A Francesa, dizia-se. Linda, andava sempre com um punhal ferino no decote farto. Sedutora, ria insana quando lhe perguntavam o nome...