27/06/2007

Dualismo consciente

O que seria de mim se não houvesse o sofrimento de todos os dias?

Me vejo incompleta sem a lágrima, pela metade sem meus olhos de inverno. De inverno sim, porque sempre vejo-os tristes e cinzas, nublados de deliciosas dúvidas. Não uso jóias, uso dor. Não uso brincos, uso tristeza. Porque me deixa humana, porque me faz sentir viva.

Me vejo a bela donzela veneziana do século dezessete, a pele empoada, o espartilho devidamente apertado, as saias pesadamente sobrepostas, os pés pequenos e delicados. Os olhos de amargura profundos na pele clara, o coração despedaçado de amores perdidos. A donzela da época em que amor era fogo e sofrimento, cálido e arrebatador. A donzela dos sonhos partidos, dos desamores, dos desgostos, das poesias não cumpridas. Das promessas de poetas esquecidos, dos suspiros tristemente alegres de seios nus sobre o parapeito da janela. Da consciência cega do que o pra sempre é pra sempre enquanto dure, de que o te amo é te quero, de que o me ame é me queira. Do dualismo, da maldade e da bondade indefinidas, onde se podia ser dois, onde se podia ser simplesmente humano sem deixar de ser perfeito em seus defeitos.
Da beleza que existe na morte, no amor, nos planos divinos não planejados. Da doçura que existe em errar, em aprender, em ensinar, em descobrir. Do êxtase que existe na Humanidade, do sangue que ainda corre, dos defeitos que nos deixam únicos, do fato de amar-se porque se é imperfeito. Da inocência de amores carnais, da malícia de amores escritos. Eu sou perfeitamente humana.


A grande burrice da Humanidade é querer se acreditar que existe um único padrão para tudo. De que o belo é sempre belo, de que o bom é sempre bom, de que o mau é sempre mau.
Somos maus, vingativos, alegres e tristes. Somos HUMANOS, por isso somos perfeitos.

22/06/2007

Sonho de uma noite de... Mundos Paralelos...

Eu páro, penso, fecho os olhos, inspiro o máximo que posso e as imagens começam a aparecer.

Eu, minúscula, olhando para cima, os pés num par de tênis daqueles de luzinhas piscantes, camiseta cor-de-rosa, os cabelos cacheados, loiros, olhos redondos de Boticceli, eu quase não respiro. Meu rosto é luz pura, aquela luz dos rostos inocentes. O sorriso dos dentes brancos, o hálito de leite, o perfume exagerado roubado do pai enquanto ele não via.
A sombra das rochas altas, a umidade infinita, borrifando água no meu rosto de bochechas rosadas e quentes, a deliciosa sensação do ar limpo e da àgua caindo infinitamente, o véu, o frio, o gosto dos sonhos que a gente não quer acordar. Eu amparada pela mão esquerda pela minha mãe, que superestimava simplesmente o fato de ter descido Oitocentos degraus pra ver Aquilo.
Meu pai, sorriso aberto, gotículas de àgua no cabelo escuro ainda, olha pra mim e diz:
- Não é lindo?
Eu, me sentindo pequena e livre, pulmões abertos, adorando o fato de tomar banho de "chuva" com um sol de verão, olho ao lado uma moça branca como papel, vestida de preto, cabelos vermelhos, crise de asma... Meu pulmão se enchendo de ar, eu tonta, não posso com tanto oxigênio... Meus lábios formigam, minhas mãos se soltam ao lado do corpo, meus pés se movem em direção à ela...
Os olhos verdes se fixam em mim, o hálito de vinho, o perfume de almiscar nas roupas úmidas, ela põe sua mão pesadamente sobre meu ombro, eu assustada me encolho.
- Ele não tinha esse... Direito... Eu queria... Ter vindo sozinha! Eu ficaria feliz... Se pudesse morrer aqui... Sozinha! SO-ZI... NHA!
Ela quase azul, tentando respirar ruidosamente, o corpo arqueando de forma descontrolada a cada inspiração, as costelas prendendo-a dentro do próprio corpo, os pulmões doentes, seus lábios se movendo de maneira estranha...
- Deus... Não era... Pra ser assim... Eu preciso...
Ela desmaia.
E eu, aperto muito os olhos, as lágrimas não caem, o que cai são as gotas de umidade que se acumulam no meu rosto. Preciso muito voltar para a minha mãe, para o meu pai... Pai... A névoa se adensando... As covinhas nas juntas das mãos infantis esticadas em direção a eles... A doce, a definição, distante, a tontura que eu adoro sentir, o quase desmaio...

E então solto o ar pesadamente, as mãos se abrem... Meu corpo estremece... Meu pulmão sacrificado por crises adolescentes de revolta. Dói e arde como fogo.
E estou de volta ao dia em que descobri que eu sei como é estar em um lugar em que eu não estive de verdade. Me sentindo velha, imatura e insegura.

Meu aniversário está chegando e o que eu mais quero é poder comemorar meu desaniversário todos os dias, fazendo 'x' nos dias do calendário tendo a noção real do tempo, sem cara-de-cu na minha festinha e gostando da idéia dos chapéus pontudos da Barbie. Será que é pedir muito?

18/06/2007

Meu nome é Legião...

É engraçado como às vezes eu estou no ônibus, pensando enquanto viajo, rezando pra não ser assaltada nos trechos mais perigosos (sim, eu moro longe), e me vem uma história fascinante... Sempre diferente, às vezes eu quase perco a parada perdida naqueles olhos, nos gestos do personagem. Eu quase choro com o sentimento dos seus olhos, me sentindo parte dele, que às vezes é ela. Que me atrai sempre com aquele mesmo meio sorriso de sempre, de todos os dias. Às vezes é infeliz, doce e confuso, às vezes é de uma beleza radiante, às vezes é quase morto por fora ou por dentro, por um câncer terminal ou por um amor perdido. Às vezes é criança imortal, às vezes é um velho com alma de adolescente. De vez enquando chora, de vez em quando anda perdido na chuva, de vez em quando não dorme, de vez em quando se apaixona pela carne macia e jovem de alguém que passa, de vez em quando sorri para a história comovente de um livro. Às vezes ele prefere cheiro de canela, às vezes prefere sair de casa com um cachecol velho que seu avô lhe deu. Às vezes não desce do ônibus e eu fico lá fora, olhando pra ela me dando adeus. Às vezes ela atravessa a rua e nem olha pros lado, irresponsável. Às vezes não sai de casa sem celular e relógio, vai que se atrasa, que a gasolina acabe no meio do caminho, tão neurótico.
Às vezes eu acho que são quem eu poderia ter sido, ou que eu fui, sei lá. Sinto toda a infinidade deles dentro de mim, fazendo cócegas no meu estômago, arrepiando minhas costas, soprando palavras no meu ouvido, aquecendo meu corpo no tempo cinza e frio e quase londrino. Às vezes quase posso vê-los todos juntos na beira da minha cama antes de dormir, comentando silenciosamente sobre o estado deplorável em que às vezes me deixo estar.
"Ela fez de novo..."
"Sim, e eu não a culpo, eu também era assim quando jovem. Inconsequente e inseguro."
"Quando ela vai aprender?"
"Se os céus permitirem... Nunca..."
E então eu viro para o lado, me encolho embaixo dos cobertores e numa doce semi-inconsciência peço ao meu Deus-Imperfeito que me envolva em seu lençol de estrelas e me permita apenas acordar quando a dor viciante de amar cegamente tiver passado.

15/06/2007

Meu querido diário...

"Hoje eu roubei do supermercado porque eu estava com fome.
Sabe, papai disse que tudo bem, porque eu não tinha o que comer naquela hora. E segundo ele, o Seu José da padaria é um viado filho da puta mesmo. Eu não entendi o que ele quis dizer com viado, mas se o papai disse, tudo bem, eu acredito.
Eu acho que Seu José da padaria anda fazendo coisa errada porque o papai chamou ele de nome feio e eu vi o Seu José dando um beijo na boca do tio que corta a carne no açougue. E eu vi a calça do Seu José se mexer... Hihihihihi... Acho que é porque o Seu José gosta muito do açougueiro e por isso beijou ele. Mamãe me explicou que quando a gente gosta muito de alguém a gente beija ela (deve ser por isso que a mamãe vive beijando o Tio André pelos cantos quando papai sai pra trabalhar).
Papai disse que um homem beijar outro homem é contra as leis de Deus. E que mulher com mulher também não pode. Papai disse que quem faz isso vai pro inferno, e eu tenho medo do inferno. E se papai disse, tudo bem, eu acredito.
Papai vai me levar amanhã na igreja, pra eu me confessar com o padre. Papai disse que Deus vê tudo o que a gente faz e pune quem erra. Eu tenho medo de Deus. Mas quem tem que ter medo de Deus é aquele viado filho da puta do Seu José que vive beijando homem, porque papai disse que isso é errado.
Meu estômago tá roncando, tem pão no armário, mas eu to com fome de bolachinha recheada. Acho que vou no Boteco do Tio Dodô, aquele viado, pra ver se eu pego uma sem ele ver, porque papai disse que roubar de viado filho da puta não é pecado, e se papai disse, tudo bem, eu acredito."

"Eu não existo"



É como olhar de fora, tudo o que aconteceu.
É como recapitular e entender aquelas palavras vazias como se agora elas fossem enormes e gigantescamente moldadas.
É como se as cores se avivassem e texturizassem, e então aumentassem de tamanho e ganhassem novos significados.
É como se agora existisse uma espécie de filtro miraculoso em tudo que ela viu e ouviu.
É como se a voz agora fosse descoberta, limpa, sem artemanhas ou desmentidos.
Ela, infantil e inocente, não sabia direito o que escutar, ver, sentir ou fantasiar. Era tudo sonho, tudo maravilhosamente pensado, tudo medido e previamente imaginado para parecer o mais doce e inesquecível possível... O Amor, a Palavra, a Promessa, o Feitiço do Tempo e da Rosa... Tudo divino e maldito, tudo era veneno e mel ao mesmo tempo e ela, tola, fascinada, apenas amava cega e leal como um cachorro.


Mas não haverá mais a ausência de inconsciência... Uma história, um sorriso... Então ela esquece, diminui, finge que ouve, olha atentamente de baixo pra cima e dá dois passos pra trás.


O passado não pode ser desfeito,
mas pode ser revisto.

10/06/2007

Dos meus sonhos medievais


Sobre a pele, apenas a luz branca da lua cheia. É chegado o momento da colheita.

Elas dançavam e cantavam e todas as vozes que soavam distantes se erguiam como a da própria terra. A grama macia nos pés descalços, o perfume das especiarias, o hálito doce do vinho com mel e canela. Os cabelos soltos, perfumados de flores amassadas entre as mãos quentes.

Os sorrisos sem preocupação, a dança livre, a respiração leve, a ausência de maldade, a confiança mútua. A neblina leve arrepiando as pele nuas, quentes, doces, brancas.

Os corpos inocentes e provocantes com cheiro de mel, movendo-se ao som das canções primitivas entoadas pelos lábios. Os olhos abrindo-se e fechando-se vagarosamente, tontos, encantados. As mãos desenhando movimentos doces no ar noturno.

Os mundos se unindo, condensando, tonteando, inebriando... Tudo tão fascinante... Fascinante...

Os pedidos sendo levados pelas vozes ao próximo mundo, perto e longe ao mesmo tempo. A terça parte da alma, aquela que não se conhece, que manda, que domina, que cria a euforia, o êxtase desconhecido, o gozo do espírito.

A dança, o côro aproxima, une, anima, flerta, aquece e então funde em um prazer sem fim a dor, o desconhecido, a mente e o corpo. Então conforta, envolve e envenena, para voltar na próxima fase, mais doce e viciante do que nunca.