Eu não espero que algum de vocês leia. Sinceramente, só me importa que isso conste nos autos quando eu for julgada antes de ir parar no inferno.
E espero que isso fique aqui por muito tempo, mais como um lembrete a mim mesma (mais um?), do que como uma carta que nunca foi realmente escrita ou remetida.
Que isso fique aqui como uma prece,
vinda da minha mais profunda parte insensata.
("...)
Que todos os dias sejam dias bons e claros para vocês dois.
Que vocês aproveitem todo o tempo que têm juntos e que não deixem um do outro, porque são opostos, mas iguais.
Não deixem ninguém invadi-los e parem de invadir-se. Acreditem cegos um no outro, como eu não consegui acreditar, como eu me recusei a ter apenas uma meia verdade, e que cansei de apenas acreditar e nada mais. Tornem-se cativos um do outro e zelem sempre! Não façam como eu, que um dia fui inteira coração, que inteira palpitei, me precipitei, que fiz papel de boba por tanto tempo, tanto tempo... Que por tanto tempo sofri sozinha por estar errada, que por tantas vezes me contestei e perdi o sono e lamentei por não ter feito diferente.
Eu, que não soube me controlar, que não soube represar tudo aquilo, não mais. Haveria de estourar um dia (eu me lembro de ter profetizado isso), e estourou. Tudo se desfez e a minha voz mudou e meus olhos escureceram, e então tudo saiu do meu alcance. E eu senti como se não tocasse no chão... Eu ouvia aquele riso na minha cabeça e meu rosto vermelho doía de vergonha. Tudo o que eu sinto é intenso, sempre, e vocês sabem disso.
Eu corri pro escuro porque era como se eu não tivesse pálpebras (e afinal, é sempre assim!), como se eu visse e vivesse tudo de novo (e era real, eu via!), repetindo-se milhares e milhares de vezes, e o som... E a sensação... Eu queria fechar meus olhos, mas minha mente tornava a lembrança tão próxima, tão próxima! Eu via! Eu vi! Eu não pude controlar tudo aquilo... Eu não consegui...
Por favor, eu peço. Fiquem juntos, e que tudo isso sirva para aproximar vocês dois, porque pra mim acabou. Eu sempre quis um motivo real pra me afastar, porque sim, eu sempre acho que as pessoas são melhores sem mim. E eu tenho um talento nato pra estragar as coisas! É uma coisa que vem de dentro.
E sou dramática, fazer o quê? Se vocês me conheceram sendo de outro jeito, que atirem a primeira pedra!
E se hoje eu vivo uma mentira, andando como um fantasma infeliz em um mundo construído sob as ruínas da minha fortaleza, eu só estou fazendo a minha parte. Sejam boas crianças, façam as suas.
Não pensem que não dói, porque eu os amo, mas acreditem, vai ser melhor assim.
Eu sempre fui o centro, a cola, um ponto de equilíbrio (errôneo) entre os dois mundos. Quase como o meio dos três. Eu sempre fui uma espécie de demônio mutável que transitava entre o Mundo Inconstante dos Mistérios Inomináveis e o Vale Liberto das Cores Vivas, mas sem nunca conseguir ter uma própria casa. Vocês não precisam mais de mim. E eu estou tentando não precisar mais de vocês.
Que me deixem construir minha própria Terra, minha própria história. O meu próprio lugar seguro, longe dos abraços e da atenção estúpida que eu (imatura) sempre precisei. Se me provaram que podem ser auto-suficientes, eu também posso, não posso?
Deixem que meu cais seja vazio, mas que seja meu, e que lá eu tenha certeza de estar sozinha e feliz. Mesmo que em mim, isso seja uma mentira. Um placebo pra minha mente esgotada, que eu recebo com um sorriso de alívio e os braços abertos.
Em mim não há mais raiva. A raiva não passou, mas não permaneceu.
A raiva não passou, mas tornou-se outra coisa. O que eu sinto é um enjôo, um enjôo denso, que me faz salivar grosso, um asco, uma mágoa indefinida, como uma pedra no estômago, com um gosto agre na boca. Um nojo de qualquer coisa, um desprezo absoluto, uma agonia imperfeita, um buraco mal-feito no meio da barriga, como se um tiro de canhão me tivesse atravessado e eu sentisse o gosto e o cheiro da pólvora ainda morna.
Paciência se eu não consigo sobreviver assim, mas é quase insuportável pra mim. Me desculpem, mas não dá mais.
Minha vó foi quem me ensinou, desde quando eu era muito pequena, uma das coisas mais verdadeiras que eu provei na vida (e que eu ainda não digeri nas minhas aulas de filosofia barata, vinda de quem tem experiência no assunto): Ninguém é insubstituível. Nem vocês, nem eu.
"- Minha filha... Sempre haverá alguém mais inteligente, mais bonita, mais amável e mais amiga do que tu. Não te espanta o dia em que tu for esquecida, porque tu não é a melhor ou a única, e nunca vai ser!"
As pessoas são substituídas todos os dias. Todos os dias. Às vezes mais de uma vez. E vocês deveriam aceitar isso, porque foi provado, e não é privilégio de alguns, mas de todos.
Talvez eu esteja errada sobre tudo isso. Talvez eu acorde daqui a cinco minutos e veja vocês dois ao meu lado, assustados porque não conseguiam me acordar de um pesadelo.
Talvez eu ainda sinta saudade de vocês quando estiver bem velhinha, ou que reveja tudo o que passou um segundo antes de morrer e que me arrependa amargamente de não ter conseguido abraçá-los e amá-los e aproveitá-los tanto quanto fora possível.
Talvez a gente se encontre mais na frente, em uma outra vida, quem sabe, como eu acho que a gente já tenha se encontrado por aí outras vezes.
Quem sabe tudo isso nunca tenha existido... Quem sabe a gente faz parte de um jogo idiota em que as peças sejam movidas por um grande macaco de cérebro atrofiado.
E pela enésima vez eu ouço (vindo sempre de pessoas que julgam me conhecer): "Tu te preocupa demais com tudo."
Desculpa. Eu não sei não me preocupar demais.
E eu prefiro acreditar em uma mentira possível, do que em um sonho irrealizável.
Eu sou pequena em mim, perdida e sozinha. E sinceramente? Eu só jogo os dados porque o jogo pra mim já acabou, e não há mais perdas ou danos.
Eu perdi.
(...")