14/06/2017

Já passa da meia-noite



Sentada com as mãos cruzadas sobre o torso, olhando pra um ponto distante atrás dela, tentando não medir as palavras, tentando não colocar um peso maior nelas do que elas já tinham, eu disse:
- Voltei a sonhar com mutilação. Aquele de cortar pedaços e tal. Fazia anos já.
Ela não tirou os olhos das anotações, mas imaginei ouvir os rastros da caneta esferográfica se tornarem levemente mais agitados sobre a superfície do papel. As palavras enchiam o ar como densas que eram, se arrastavam pelo chão, se enroscavam nos meus tornozelos. O peso das palavras me fizeram olhar pro chão, pesavam nas minhas pálpebras, nos meus globos oculares, na ruga entre as minhas sobrancelhas.
Ela começou a falar sobre remédios, sobre terapia, sobre controle, sobre tempo. "Descansar", eu ouvi.
Mas eu não acompanhava.

Saí de lá ainda com aquela linha que conectava meu olhar diretamente com o chão.
Meu corpo, absolutamente funcional me levou pra casa enquanto eu observava minhas mãos biologicamente perfeitas. Meus sentidos cuidaram da minha segurança. Minhas pernas foram assertivas e persistentes.
No entanto eu ainda tinha a sensação nítida de que eu poderia me desmanchar no meio do caminho, evaporar como se nunca tivesse existido. Não faria diferença, não há evidência de que isso não aconteça. Um nome a mais ou a menos na lista de desaparecidos seria isso e somente isso. No entanto, essa trama intrincada de células insistia em permanecer impecável em odiar a si mesma.

O quão engraçado é o autômato, ao se dar conta de si mesmo e da própria plenitude, desejar a autodestruição?

13/06/2017

I'm still here, honey



De novo confinada na liberdade opressora da rotina.

Novamente sentindo que não parece fazer sentido sonhar.
Mais uma vez deixando coisas pra trás.

Pedaços de mim espalhados por aí.
Caindo como podres, sem que eu note, sem que haja controle.
E aquela sensação de vazio volta a me dar algum prazer. A dor. O controle.
O formigamento das mãos, a dor na nuca, a pontada nas costelas.
Ir ao limite do meu corpo da maneira mais silenciosa possível.

Prestar atenção ao fato de que eu não consigo mais prestar atenção em nada.

Você me dá música, você me dá livros, você enche a minha boca de álcool.
Me abraça e diz que vai ficar tudo bem. Puxa minha orelha, diz que eu preciso descansar.
Eu sorrio e conto infinitas pessoas que parecem se preocupar.
Mas que eu não tenho coragem de dizer: eu sou um caso sem solução












E eu solenemente as devolvo tudo o que eu tenho e tudo o que eu posso dar:

meu mais sincero s i l ê n c i o

03/06/2017

Isso é sobre o tempo


Ou sobre a falta dele.






se eu sempre me pergunto como se remenda um coração quebrado







é no tempo que reside toda a cura
é no tempo que parece residir toda a explicação

mas dizem que no canto esquecido do tempo, a gente não aprende
dizem que no canto esquecido do tempo, a gente não se arrisca
dizem que no final do caminho mal percorrido do esquecimento reside um tipo de caos ordenado
um ouroboros em que o tempo encontra a si mesmo
uma rotina onde tudo o que se ouve é o ruído branco da ordem do caos
nesse canto, a paz da repetição parece um carinho bem vindo

e se eu me prendi na jaula da rotina num canto esquecido do tempo
se todo o amor que eu sinto agora vem puramente do conforto de não conseguir pensar
se eu me deixei ser amarrada pelo ouroboros
se eu abracei o caos ordenado e fui abraçada por ele
se eu tranquei a porta e joguei a chave fora
é porque daqui de dentro eu não alcanço ninguém, mas mais importante

aqui dentro










ninguém me alcança

Veja bem, meu amor: eu não me tranquei aqui dentro.
Eu tranquei todos pra fora.