21/05/2017

Bile


Não há nada hoje que não me traga prazer que não me traga dor na mesma proporção.
Culpa. Sensação de tempo perdido. Cheiro de morte.
Não ha nada que eu faça hoje que não me lembre constantemente das coisas que eu deixo de fazer.
Tudo o que existe, existe com o propósito de me lembrar do que não existe. Tudo o que existe, existe porque há algo que não existe em contrapartida.
Todas as minhas escolhas me lembram as coisas que eu deixei de escolher.

Todos os dias eu acordo com a plena sensação de que há algo errado. A solução parece estar fora de alcance. Então eu vivo o dia errado mesmo, porque é o que existe de real. E durmo com a consciência cheia da certeza de que o dia foi gasto com algo errado e que o dia seguinte vai ser errado também. Eu choro até dormir, mas tento me convencer de que nada pode me parar. Eu finjo que me movimento, mas não saio do lugar. Ensaio passos de saltos longos, pra longe, pra perto do silêncio que eu acho que a paz deve ter, mas não saio do lugar.

A falta de tempo tomou o lugar do que havia em contrapartida ao medo. E agora metade de mim é falta e a outra metade é abismo. Metade é maresia, metade é grito. Metade é ficar presa dentro de um escritório fazendo sempre as mesmas coisas, metade é se afastar de todo o resto pra evitar a dor inevitável que é amar (viver?). Não pensar nas coisas não me dá tempo de entendê-las. Permanecer sob o abrigo da falta de tempo me dá tempo suficiente para não digerir nada. Eu parei de aprender. Eu parei no tempo. Mais do que nunca, eu me afastei de tudo o que me fazia reinvenção. Eu abracei de bom grado o meu lugar no umbral, porque no umbral eu não preciso lidar com as nuances de ser humana. No umbral eu só sou.

Mas daqui de cima, quando o tempo se desdobra em três, quando eu ouço o doce ressonar entre a serenidade e a extravagância, respiro fundo o processo inevitável da vida. A colheita não foi doce, mas foi farta. Há de se agradecer ao solo e esperar pela esterilidade da terra. Há algo se movendo, a serpente avança sua mordida sobre a própria cauda, roça sua pele fria em torno do meu pescoço e aperta minha garganta com uma avidez paciente, disposta a me curvar.

Eu cedo.
Ao tempo, eu sempre cedo.