21/12/2017

That's why storms are named after people



"Do not fall in love
With people like me.
people like me
will love you so hard
that you turn into stone
into a statue where people
come to marvel at how long
it must have taken to carve
that faraway look into your eyes

Do not fall in love with people like me
we will take you to
museums and parks
and monuments
and kiss you in every beautiful
place so that you can
never go back to them
without tasting us
like blood in your mouth

Do not come any closer.
people like me
are bombs
when our time is up
we will splatter loss
all over your walls
in angry colors
that make you wish
your doorway never
learned our name

do not fall in love
with people like me.
with the lonely ones
we will forget our own names
if it means learning yours
we will make you think
hurricanes are gentle
that pain is a gift
you will get lost
in the desperation
in the longing for something
that is always reaching
but never able to hold

do not fall in love
with people like me.
we will destroy your
apartment
we will throw apologies at you
that shatter on the floor
and cut your feet

we will never learn
how to be soft

we will leave.
we always do."

—   “Do Not Fall in Love With People Like Me,” Caitlyn Siehl

30/11/2017

Listen carefully

I'm daydreaming.

Interpol - Narc

Cause it's just you, me and this wire, alright
Let's tend to the engine tonight

Estou sentada em um sofá e a casa está cheia. sinto cheiro de álcool e cigarros. Música alta, mas nunca parece suficientemente alta. Uma garota de pele morena e olhos de gato encaixa suas pernas em torno da minha cintura e senta-se no meu colo. Abre minha boca com uma das mãos e derrama whisky da garrafa enchendo minha boca de calor e ardência. Não tenho tempo de engolir, num beijo ela me rouba a bebida. Sorri e empina a garrafa em um grande gole. Cerra os olhos e engole. Ainda fico com a boca entreaberta sem entender o que aconteceu. Tento qualquer reação. Ela me beija novamente e eu me entrego a algo entre a culpa e o desejo de silenciar algo no fundo da minha cabeça. Fecho meus olhos e penso em outra pessoa.

Placebo - Protége moi

Sommes nous les jouets du destin
Souviens toi des moments divins
Planants, éclatés au matin
Et maintenant nous sommes tout seuls

Estou sentada num banco próximo à parede pintada de preto. Está escuro, mas algumas luzes coloridas penetram minhas pálpebras fechadas. O toque dela na minha mão é frio. Não sinto meu corpo se mover, mas ele se move. Viro o rosto e minha boca procura a dela. Meu coração ameaça me abandonar, correndo escada acima. A respiração dela é morna e próxima. O beijo dura uma era. Meu corpo inteiro treme. Sinto minhas unhas enterrarem na carne macia das palmas das minhas mãos. Eu busco desesperadamente guardar essa cena na minha memória. Meu coração aos pulos desafina fica, fica aqui, não vai. Mas o mundo ao meu redor parece desaparecer e morrer. 

The Strokes - Juicebox

Waiting for some action
Waiting for some action she said
“Why won't you come over here?”

Estou com meus amigos. Cigarros e vinho barato em garrafas de plástico. Sinto frio, mas não me importo: eu flutuo. Eu ligo pra ele, digo que estou indo pra uma festa, pergunto se ele quer ir comigo. Sei que ele não curte a música, mas encaro como ousadia quando ele aparece. A gente dança, eu me sinto bêbada, mas ele parece não se importar. A mão fria dele parece elétrica quando toca a minha pele aquecida pelo álcool. Ele me convida para ir na casa dele. Eu não hesito. O efeito do álcool passa, mas minha pele continua em ebulição. Eu pergunto a ele onde fica o quarto. Ele sorri. O beijo parece qualquer coisa magnética, meu corpo parece puxar o dele contra o meu de alguma maneira inexplicável e selvagem. Há qualquer sincronia desconhecida de movimentos de braços e mãos e pernas e pele. Eu quero consumi-lo por inteiro, meu corpo parece precisar se alimentar dele. Eu sussurro, próximo ao ouvido dele fuck me, meus olhos muito abertos na escuridão. Há qualquer reação como um arrepio nele, fuck me uma faísca, um tremor e o mundo parece vibrar fuck me por um segundo. O quarto parece brilhar por segundos que parecem fuck me uma eternidade antes de virarem a escuridão em silêncio.

Ladytron - Destroy Everything you Touch

Destroy everything you touch today
Destroy me this way
Anything that may desert you
So it cannot hurt you


Voltamos de um passeio qualquer, ele quer subir para meu apartamento, mas eu não consigo pensar nele na minha cama. Ele me puxa pela mão através do quintal até a parte de trás do prédio. Me pressiona contra a parede com o peso e o calor incendiário do corpo dele. Encaixa a coxa entre minhas pernas e beija meu pescoço. O chão parece desaparecer sob meus pés. Há algo como uma sensação de entorpecimento dentro de mim, um chacoalhar ameaçador e provocante de não saber parar. Sinto minha mente rir histérica antes de gemer com sua voz rouca e lenta me devora. A mão dele parece deslizar sobre mim como qualquer coisa mágica entre a força e a paciência. Abre caminho entre tecidos, rasga a minha pele, me dilacera e me mantém viva, tão viva quanto eu nunca fui antes, tão viva quanto eu nunca desejei ser, de maneira insuportável, insustentável, inteira, unidade, histeria até que eu me desmanchasse, diluísse, anulasse, dissolvesse completamente, integralmente, absolutamente. Antes de fechar os olhos ainda consigo recolher meus pedaços que jazem exaustos no concreto.

Muse - Supermassive Black Hole

Glaciers melting in the dead of night
And the superstars sucked into the super massive
Super massive black hole

Me deito na cama estreita. Respiro fundo antes de decidir honestamente que vou tentar dormir. Fecho os olhos e escorrego rapidamente a um estado sereno de vigília quando ouço meu nome ser chamado. Abro os olhos. Meu nome é sussurrado novamente. Espero qualquer coisa acontecer, qualquer coisa que me dê a certeza de não estar dormindo. Vem pra cá, eu ouço. Continuo incrédula. Me sento na cama, o corpo em tremor puro, os pés em ponta no chão frio me fazendo arrepiar. Eu rio, minha voz parece metálica e apressada. Eu levanto e caminho em direção às vozes. Quatro mãos me tomam de assalto. Habilmente me deixam nua. Eu me entrego ao desconhecido. Mãos que encontram pele, olhos que vislumbram sombras, sussurros que encontram ouvidos, tão próximo, tão próximo, como se não houvesse nada a não ser tocado, nada a não ser preenchido, completado, derramado. Minha mente vaga para qualquer lugar próximo ao inexplorado, em que portas, janelas, umbrais se abrem infinitamente. Meu corpo parece conhecer disso muito mais do que eu poderia supor, sabe o que fazer, onde tocar, como se mover. Me agarro desesperadamente ao oculto enquanto mãos me aterram impiedosamente sobre o físico me fazendo ter certeza dessa decisão, me fazendo intimidadoramente terrena, consciente, alerta, segura. O mundo expande, infinito, se enche de uma grandeza indescritível. Eu adormeço entre braços e abraços, num sono sem sonhos. Eu sou o que eu sou, aqui, agora, pra sempre.

The Weeknd - Often

In my city I'm a young god
That pussy kill be so vicious
My god white, he in my pocket
He get me redder than the devil 'til I go nauseous

É domingo, acho que início de março de uma eternidade no passado. Acordo com o sol da manhã e a janela aberta. Fujo da luz, escorregando da cama para o chão. Meu corpo encontra outro e se aninha. Nunca estive tão desperta. A mão dele envolve minha cintura e se aninha nas curvas do meu corpo. Ele me puxa contra ele, assertivo, lento, temendo qualquer reprimenda, qualquer negativa, mas eu só sou toda atenta. Ele afasta meu cabelo, pousa os lábios na minha nuca. A mão dele entra sob meu pijama, segura meu seio. Todo o movimento é lento, tudo parece flertar com o ócio, todo o prazer parece poder esperar em fogo brando. Me aconchego sob o corpo tenso dele, no que parece ser um redescoberta do meu próprio corpo. Um tremor sobre em ondas vindo do corpo dele para o meu. Há qualquer coisa nas mãos grandes e mornas dele, uma falta de pressa, uma paciência, uma experiência, como se ele já tivesse me tocado antes, como se toda a espera fosse mais do que somente espera. Há qualquer cadência nesse desmazelo, uma obstinação em acordar todo e qualquer poro da minha pele, preencher meu corpo inteiro de suspiros sufocados. Um baque surdo me desperta, vindo diretamente de dentro de mim, uma provocação, um acordar. Por um ano meu corpo encontra outro corpo ao fugir da luz do sol. Por um ano, me sinto livre.

Black Coast - Trndsttr (Lucian Remix)

'Cause when your head's right, you take your time
It's something about the love of things you like

Quando ela entra no quarto eu estou nua, com a janela aberta e uma lua escancaradamente cheia banhando o quarto em luz fria. Ela hesita, ainda com a mão na maçaneta. Entra, fecha a porta, eu falo. Eu observo ela enquanto ela me observa. Não sei o que se passa com ela. Mas minha cabeça grita vem, me deixa entrar, me deixa te devorar, te entrega, te entrega, te entrega. Quando ela se aproxima os olhos azuis dela parecem tão escuros, enormes, imensos, negros, dilatados, brilhantes. Jogo as roupas dela no chão sem que ela consiga tempo pra reagir. As mãos dela me seguram como se eu fosse querer fugir a qualquer instante. Somos toda uma, boca, língua, mãos. Pouso o corpo dela sobre a estante, ela me abraça com força enquanto uma das minhas mãos envolve ela pela cintura e a outra a faz se derreter. Há qualquer coisa fascinante e indescritível em gritos silenciosos e lábios que tremem. O cheiro da pele dela me invade inteira, tudo em mim grita violentamente te entrega, te entrega, te entrega. As unhas dela se enterram na pele úmida das minhas costas enquanto eu enxergo o caminho que ela está tomando. Eu paro. Ela se entrega, desamparada, sem voz insinuando não, não. Eu sussurro então pede. Minha mente selvagem grita eu vou te fazer implorar. Ela se entrega, inteira, completa, infinita, líquida, fruta madura e suculenta. Me faz devorar cada pedaço, pomo de ouro e mel, me faz lembrar que mulher é fruta que se come com duas mãos cheias e boca transbordante.








I'm daydreaming.

                                I'm daydreaming.

                                                                I'm daydreaming.

                                                                                                I'm daydreaming.

22/11/2017

do outro lado do universo


[...]"Ah, fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, noites afora, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca  enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro estranho o cheiro preciso dele. Que não suspeitará da tua perdição, mergulhado como agora, a teu lado, na contemplação dessa paisagem interna onde não sabes sequer que lugar ocupas, e nem mesmo se estás nela. Na frente do espelho, nessas manhãs maldormidas, acompanharás com a ponta dos dedos o nascimento de novos fios brancos nas tuas têmporas, o percurso áspero e cada vez mais fundo dos negros vales lavrados sob teus olhos profundamente desencantados. Sabes de tudo sobre esse possível amargo futuro, sabes também que já não poderias voltar atrás, que estás inteiramente subjugado e as tuas palavras, sejam quais forem, não serão jamais sábias o suficiente para determinar que essa porta a ser aberta agora, logo após teres dito tudo, te conduza ao céu ou ao inferno. Mas sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por todos, que tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não importa. Por trás de todos os artifícios, só não saberás nunca que nesse exato momento tens a beleza insuportável da coisa inteiramente viva. Como um trapezista que só repara na ausência da rede após o salto lançado, acendes o abajur no canto da sala depois de apagar a luz mais forte no alto. E finalmente começas a falar."

Caio Fernando Abreu, In: Morangos Mofados (Natureza viva)

17/11/2017

you met me at a very strange time of my life

estou num vagão, me afastando constantemente e o ruído branco do metal contra o metal me leva constantemente a uma zona familiar de entorpecimento, mas o balanço desigual do caminho não me deixa adormecer com a cabeça escorada no vidro da janela. semicerro os olhos e penso em como eu entrei aqui, ou talvez eu já estivesse aqui e deveria ter descido dezessete estações atrás, mas não faz mais diferença.

estou num vagão, me afastando constantemente e não me atrevo a pensar em quem o em que eu deixei pra trás ou como isso aconteceu, não me atrevo a tentar lembrar se fui eu que entrei no trem ou se eu só deixei de sair dele. se a imagem clara de estar andando sobre os trilhos era real ou se é só minha mente adormecida tentando me fazer crer que algo hediondo aconteceu enquanto um eco silencioso vibra "garotinha patética, estúpida, egoísta, agressiva, invejosa!" - e as palavras soam familiares e quase engraçadas enquanto meus olhos escorregam para trás sob as pálpebras pesadas, mas há algo aqui, algo que não estava aqui antes, algo que me faz sentir qualquer coisa próximo ao escárnio pelas pedras dramáticas que meu coração implanta no caminho pra tentar me fazer tropeçar, há algo animalesco roçando as unhas sob a minha pele e me fazendo suspirar por algo que eu ainda não sei o que é.

estou num vagão, me afastando constantemente e a vibração sutil do banco me enche de uma excitação morna e lenta, quase infantil, fervendo meu sangue em fogo brando, pra liquefazer qualquer coisa congelada que havia em mim; e eu continuo me afastando nesse estado entre o sono e a vigília, sem saber se há algo como o certo ou o errado, mas ainda me sentindo perdida entre a minha origem e o meu destino.

estou num vagão, me afastando constantemente enquanto ao meu lado eu enxergo claramente eu mesma, sentada, muito atenta e muito acordada, coçando uma das suas vinte cabeças, enquanto uma vigésima primeira parece querer nascer como um tumor ao lado da cabeça nº 12. todas elas com muitos vincos na testa e pálpebras trêmulas sob olhares opacos e metálicos como grânulos de açúcar, como se a gravidade e a luz operassem diferentes ao redor de cabeças múltiplas que perderam a disposição e a criatividade para fazer planos. penso que preciso fazê-la acordar desse sonho que aparenta ser muito lúcido e pesado, penso que gostaria de fazê-la aproveitar a letargia e o movimento e talvez a falta de rumo (aquele pouco de loucura), talvez estender a mão para fora da janela e sentir a resistência do ar contra a pele, quero dizer pra ela que há prazer depois da esquina, que eu estou ao seu lado e que sentimentos são reais mesmo que nossos corpos os fabriquem de maneira quase mecânica - tudo pelo bem da sobrevivência e pela graça da piada de mau gosto, mas ela não parece querer me escutar, sequer parece me ver e eu me sinto afastar dela também, como se estivéssemos em vagões separados, tomando cada vez caminhos mais distantes.

estou num vagão, me afastando constantemente e sentindo que há algo muito urgente na necessidade de tocar, enterrar o rosto em mechas do cabelo de outra pessoa ou simplesmente passear as pontas dos dedos entre pelos arrepiados e chamar isso de intimidade ou só de silêncio porque há um tudo-bem em ser nada, em ser só mechas de cabelo e dedos e peles arrepiadas; por enquanto o tudo-bem parece estar aqui comigo, pra me dizer que há essas coisas humanas e que tudo-bem se apaixonar por pessoas que nem sabem quem eu sou, tudo-bem estar cansada-e-sozinha e não querer mais estar nem-cansada-nem-sozinha, tudo-bem não conseguir lidar mais com a solidão e nem com a intimidade, tudo-bem, deve existir algo nesse meio, uma forma de ceder sem se partir ao meio, um sorriso que não seja acompanhado de condescendência, um desejo sem culpa, entusiasmo sem cobrança, tudo-bem, há em algum lugar a serenidade e a extravagância em alguma coexistência imparcial e palpável.


estou num vagão, me afastando constantemente


estou num vagão, me afastando constantemente


estou num vagão, me afastando constantemente


estou num vagão, me afastando constantemente e tudo-bem


13/11/2017

sangre

eu não lembro do sol. o sol nunca parece chegar aqui. parece estar sempre bater em algo acima do céu, acima do que eu consigo enxergar, pouco à frente. porque a neblina está sempre aqui, úmida, fria e delicada, como se eu pudesse tocá-la ao esticar a mão.
tem sido mais difícil viver aqui. as lebres são raras e magras. as plantas queimam no inverno rigoroso e padecem sob a chuva fria. tudo o que eu tenho são mais dois invernos, talvez três, mas não mais do que isso. e tudo parece morrer aos poucos aqui, como se eu estivesse presenciando um fim penoso de ciclo, sem expectativa de reinício. tudo aqui, mesmo que parado no tempo, parece sofrer na espera de um fim agonizante, silencioso e inevitável.
sei que eu não estou sozinha aqui. e sei que não importa o que há ao redor, o que há aqui já me é familiar e já conhece o cheiro do meu silêncio. eu ouço eles ao redor da cabana. eu escuto eles se aproximarem da água, matarem a sede com seus passos cautelosos ao cair da noite. e eles parecem não se afastarem nunca.
gosto da ideia que eles existem aqui. que além de mim, dos pássaros que eu ouço e não enxergo e das aranhas com suas teias delicadas balançando suas gotas de orvalho na brisa, existe também algo selvagem e imprevisível.
há algum prazer eufórico nesses dias cinza em que eu flerto com a ideia de não estar só, com a ideia de morrer com a garganta dilacerada ou de estender minha mão e alimentar seja lá o que ronda esses espaços em branco do lado de fora.
deixo na rua pequenas oferendas, uma lebre ainda morna, peixes frescos e limpos. entro pra cabana e em pouco tempo sinto o cheiro nu do sangue invadir minha cabeça e molhar minha língua como se fosse eu a devorar a carne. entendo em troca receber qualquer reconhecimento de que eu existo, como se houvesse alguma necessidade muito humana a me lembrar que eu preciso de um eco para ser real.
fantasio frequentemente sobre me entregar à floresta e aos lobos, penso se eles me tomariam como presa tanto quanto eu gostaria de ser tomada; imagino se seria imediatamente dilacerada ou se haveria reconhecimento ou respeito na minha morte, imagino se eles entenderiam minha atitude humana de ser arrebatada e dilacerada para poder enfim existir, ou se existiria algum tipo de hesitação ao sentir o cheiro do meu último medo.
não há opção no entanto para a ideia que me ronda, de que não haverá resistência uma vez que eu decida me render às esferas não domesticáveis do meu próprio ser, uma vez que eu decida me render à minha própria natureza



08/11/2017

two lined

uma teia de aranha delicada e complexa no ponto de encontro de paredes altas de concreto. contraste tão absurdo entre animal e humano e no entanto, tão familiar aos meus olhos plúmbeos

acordar cansada mesmo tendo dormido muitas horas, observar o dia clareando através dos buracos da cortina velha enquanto convenço meu corpo a se sujeitar aos obstáculos das horas seguintes

ter alguém tocando meu corpo sem que eu possa retribuir o gesto, estar presa tão somente em um ato passivo em que eu deveria ter algum prazer e relaxamento, mas sentir apenas desconforto e medo

ver as cicatrizes demorarem a desaparecer da minha pele; ver minha pele ficar cada vez mais velha, com uma sensação certeira de que é irreversível

emendar peças de crochet cuja fabricação me renderam calos nas mãos inexperientes. vestir a peça apenas uma vez, esquecer que ela existe ou que alguma vez na vida eu soube como criá-la

a mão dele colada na pele suada do meu seio "ser humano é uma merda, a gente se rende a qualquer afeto como se ele fosse insubstituível", ele murmura. "sim", eu digo "ser humano é uma merda"

na estrada do tempo, me encontrar na exata encruzilhada vazia entre a sobriedade e a embriaguez, entre a frieza e o prazer, entre o ceticismo e a paixão

me perder no delírio-desejo de banhar meu corpo em mel e canela novamente, com a sensação morna e aconchegante de adormecer sem sonhos em lençóis de cetim

a visão dos meus cabelos cortados rente à cabeça, meus olhos encontrando um reflexo no espelho enquanto procuro alguma beleza em meio à loucura

andar horas na tempestade de verão daquela tarde quente, pessoas correndo, meus livros enrolados em sacolas plásticas na bolsa porque nada me importava mais do que meus livros

eu ajoelhada na sacristia, o padre se preparando para a missa, olha para mim e diz "er verheit Sie" com um meio sorriso no rosto. eu me agacho e beijo a barra da casula enquanto choro

minha mão passeando no veludo cor de vinho dos móveis antigos, o cheiro claro e inconfundível do piso de madeira escura e antiga

a cama pequena demais para três corpos, "que cor você vê?" ela perguntou. "verde", eu respondi. naquela noite, sonhei que era uma cigana, acordei em paz

depois de beber três copos de vinho peguei uma bolsa e fugi de casa, entrei em um estúdio e tatuei as palavras "metade amor, amor pela metade". nunca mais voltei pra casa

morrer afogada no mar ou queimada como as mulheres sábias do meu passado, mas ainda assim morrer inteira como parte de algo maior que eu


01/11/2017

Solilóquio

there's no good
there's no evil
i don't know a thing about future
i can't do shit about the past

for instance, there's no time other than now
there's no thing such as sin
we are what we are now
and we souldn't bear any wound

but i swear i'm afraid all the time
because
it seems there's no now at all
i'm floating between things and
i'm drowning in tears from my past

if i say to you that i'm tired of swimming
and if i say to you that i feel already dead
isn't it the same?


so i laugh
so i dance
so i dress up
i become Luna
i become a doll
i become a demon
i smile at you
i stop your movement
i wrap you in my arms
i stare at your soul until you break

but oh, honey
i am no one
i am just a mirror
dying in front of you


26/10/2017

Everything is about water

Oh, you see
I feel the river
The old one
and I'm tired to be here
I'm so tired
But the river runs faster
and somehow I feel I'm here to learn a lesson



But how can the river
teach how to swim
If I'm still trying to die?

And how can the river
teach how to die
If I'm still trying to swim?

19/10/2017

Simile

Há algo à soleira da porta. Algo obscuro, sem nome. Sem nome porque apesar de me parecer familiar, me é desconhecido.
Não há nada depois da esquina, veja bem. Não há mais animais à espreita nesse deserto, tampouco criatura tentando qualquer coisa perto da dilaceração iminente da minha carne. Na verdade o que há em mim não parece esperar, já está aqui, presente e constante. Um peso, uma coisa perto de qualquer comichão no fundo da minha cabeça, uma dormência contínua, ruído branco pronto pra ser só isso, gota d'água pingando num eco pra marcar o tempo em ritmo infinito.

Mas me cansa. Como me cansa. Esse parasita agarra-se às minhas entranhas, penetra meus ossos, força sua passagem entre as minhas respirações. Dobra meu corpo devagar, invariavelmente sem pressa. Pendura-se insolente nos meus joelhos, segura firme meus tornozelos. Aumenta a gravidade de maneira tenaz e persistente, apunhala minha nuca, aprisiona meus músculos.

O que me parece com tudo isso, é que saio de uma caixa para entrar em outra. Desfaço um nó para que outro seja feito. Saio do labirinto para outro maior ainda. Acho uma resposta e junto à ela, outras milhares de novas perguntas.

Se mordo meu próprio rabo, se afundo a terra sob meus pés ao andar nesses círculos, há algo que me diga que a vida não é prisão?



18/10/2017

Public letter for many

My dear friend
I promisse I'll try to be kind
Because, most of all, I am proud of you
And I am glad that you've tried things
I'm too broken to try
Remember that you have my encouragement
My blessing
And my joy
and now that I see your delight
I almost feel fulfilled

But it doesn't matter how I feel, you see

Because this is not about me
This is not about how damaged I am,
This is not the dreadful things I've seen
This is not about how skeptic I became
Because
This is not my life
This is not my story
This is not my path

And I know you've worried about many things
I know you've struggled
I know you overthink
And sometimes, overfeel everything just like me

I recognize

Now, that you feel whole
Now, that you feel new
Now, that you feel fixed

Now that I know it must be spring season somewhere

I must be my most observant companion
And I must learn
how
to
accept
myself
when
my mind
is

d e s e r t e d


your story is not about me
and this place is not about you

g o o d l u c k

17/10/2017

O nome da matilha

Acordei do que imagino ter sido uma semi-morte escura e sem sonhos. Nessa morte não havia Licaios, nem Gere, nem Maugrim. Também não havia Nitka. E nem havia paz.
Abri os olhos, desorientada, com a língua colada nos caninos e as extremidades dormentes. Sentia cheiro de morte ao fundo. Imaginei se a morte teria sido a minha e isso seria um pesadelo, mas não era.
À minha volta, o que eu conseguia ver através da luz artificial ganhava nome. Eu sabia o que eram, como se sempre tivesse sabido, como se o nome viesse antes da coisa, como se eu fosse algo além de mim. Mim. Eu. Algo além do que eu era antes.
Eu sentia frio. Sentia meus dentes batendo e minha mandíbula tensa. Sentia minhas mãos tocarem meus braços em um abraço encolhido e aflito.

Mãos.

Braços.

Dedos tensos procurando uma unidade em um corpo estranho e gelado.

Fora do semi-sono perturbado e dolorido do frio, havia um outro eu. O som ensurdecedor do frio insensível que eu sentia dentro de mim me tirava o foco de pensar no todo. Um outro eu. Debilitado, doente, novo. Mas completo. Consciente.
Eu sentia metal. Eu estava deitada no metal. Nua. Estranhamente nua como eu nunca estive antes. E eu sabia de tudo. Em tudo havia nome. E o que eu sentia era chamado medo. Eu ainda sentia frio, e o frio cruel ainda doía, mas eu tremia com o terror de aceitar que eu não era mais Nitka, eu era alguém além disso. Eu era alguém.
Tentei abrir mais os olhos, tentei focar, tentei falar. Me ouvi num gemido arrastado e cheio de algo que eu não reconheci. Me ouvi chorar. Um lamento longo, fraco e aflito. Intimamente ansiei que ninguém me ouvisse.

"Então foi isso que eu sempre fui" - eu ouvia o lamento baixo de Licaios. "Eu sempre soube que havia algo. Não errado, não. Sempre fui o que deveria ser." - ele dizia quase baixo demais para que eu pudesse ouvir. "Mas Nitka, eu preciso dizer... Estamos livres".

Livres de que? - eu ainda pensei em desespero, antes que o extraordinário peso da existência tombasse sobre minha cética consciência.



Veja bem, meu amor, tenho certeza que é primavera em algum lugar...

13/09/2017

onde está a matilha?

A neblina toca suave a superfície quieta da água que se abre logo após a saída da mata fechada. Eu segui a água até aqui em silêncio, sentindo medo e cansaço, fome, exaustão. Dormi sob a chuva, a neblina e o frio. Sobrevivi caçando coelhos esqueléticos demais pra se darem ao trabalho de se esconder antes do inverno. Pelos e ossos era o que parecia sempre me esperar.
Lembro de tentar reencontrar a matilha, mas um por um eles tinham desaparecido. Primeiro os pequenos que passaram pelo verão. Depois Gere, Maugrim, Licaios. Durante a caçada, durante o sono, não importava. E agora restava eu. E eu estava esgotada. Fraca. Vulnerável. E as noites ficariam mais longas. E os dias mais curtos. E os coelhos mais magros.
Amanhece no outono nublado. Eu estou faminta e pressinto qualquer coisa me seguindo na escuridão, mas sei que não há nada que vá me atacar, não aqui, quando há ainda algum respeito sobre o cheiro de sangue fresco da minha última caçada.
Mas elas me observam há tempos, essas criaturas. Fazem barulhos estranhos na mata, quebram galhos sob seu peso, respiram alto demais e deixam seu cheiro acre em tudo o que tocam. Não sabem de nada, essas criaturas. No entanto há algo de temível. Há algo que eu sei que Licaios estaria desconfiado, com seus olhos aguados semi-cerrados e suas orelhas abaixadas. Aqui há sempre algo no ar, nem que seja o silêncio pesado que precede o frio congelante. E aqui não há mais Licaios.
Nessas criaturas existe essa desconexão, essa cegueira pela leitura do ambiente. Não gosto disso. Elas faltam com algum nível de consideração, não há obediência pela ordem natural das coisas. Maugrim traria alguma sabedoria sobre isso, mas não há mais Maugrim aqui. Maugrim saberia o que fazer, não eu. Maugrim era uma sobrevivente. Eu sou algum tipo muito realista de covarde.
Eu bebo a água fresca e terrosa do lago. Por um momento me permito baixar a cabeça e fitar os olhos amarelos no reflexo à minha frente. Ainda sou eu mesma. Austera, silenciosa, faminta. Eu mesma. Quando foi que eu me tornei esse animal cauteloso? Eu me pergunto. Com esse olhar desconfiado por trás de um crânio alongado demais pra não ser apenas pelos, ossos e caninos muito longos? Não há nada aqui que me proteja, eu preciso...

Mas no reflexo eu vejo algo, uma agitação, algo atingir meu pescoço, assim sem aviso. A contemplação tem afinal um preço. Diante da dor aguda tento correr pra mata. Ouço dentro de mim Gere dizer

Nitka,



não






mais



tempo


12/09/2017

is this hell?

eu sei que choveu
choveu até que eu esquecesse o que era sol
choveu até que tudo fosse infinitamente cinza e úmido
vento, trovão, raio, tormenta
naveguei meu barco e torci infinitamente pra não me afogar na imensidão opaca e escura das águas

mas agora cá estou eu, depois da estiagem cinzenta que assolou esse lugar durante dias
arrastando meu barco por uma corda pendurada pelo ombro
chapinhando no lodo que se formou com todo o resto de coisas que a água conseguiu matar
com tudo o que foi afogado pela raiz a ponto de parecer tudo cadáver
resto
sobra indecifrável roçando meus joelhos cansados

Na linha do horizonte não há nada
nem sol
nem luz
nem paz

no meio do caminho só há o caminho que eu já percorri
o r o b o r o s





31/08/2017

Devoção

me ajoelho no umbral, exausta, e finalmente deixo alguma luz entrar
me abraço nos seus pés, faminta e esgotada
como a criança que sou, frágil e curiosa abro muitos os olhos pra entender
por quê eu deixei de te ter na minha vida tanto tempo
se tudo o que te traz comigo é fuga, como eu poderia ter te deixado fugir?

se o paradoxo me extingue,
como ainda consigo me surpreender com o arrepio na minha pele?
com o calor no meu rosto ou com a minha boca seca?
com qualquer coisa vindo a galope no fundo do meu peito, tambor de guerra insuspeito nas esquinas da minha mente, olhos sem pálpebra na escuridão, boca em sorriso de desdém?

eu prendo a respiração e minhas mãos suam
eu acredito (mesmo sabendo que isso é só outro tipo de ilusão)

mas se esse é o único prazer que eu consigo me permitir sentir...

M E D E V O R A
M E D E V O R A
M E D E V O R A
M E D E V O R A
M E D E V O R A
M E D E V O R A



30/08/2017

o que ela diz sobre ele fala mais sobre ela do que sobre ele

É como um tapa no meio do meu rosto, toda a vez que acontece.
Um empurrão, pra me jogar no chão.
Estrépido surdo, bolha de ar depois do afogamento, chute nas costelas.
Corta a respiração, interrompe qualquer linha de pensamento, extingue qualquer chama.
não há palavra minha que cruze a mente
o que acontece é uma repetição surda

"ele me disse que..."
"...foi isso que ele me disse"
"foi o que ele disse"
"...era isso que ele dizia"
"disse sim..."
"tua acha que ele não disse que..."

Rouba de mim qualquer vontade.
Derruba de mim qualquer raiva.
Apaga de mim qualquer certeza.

E é como se colocasse uma arma na minha cabeça, como se me impusesse ser alguma refém da verdade. O que ela diz é "o que ele disse" apontando pra mim e puxando o gatilho aparentemente sem medo, uma arma que ela carrega com uma munição que não é dela, mas com algum resquício de sorriso que vem do poder de saber. Saber que aquilo me machuca. Saber que aquilo me desorienta. Saber que aquilo é uma espécie distorcida de vitória. Saber que aquilo de alguma forma

me silencia

seca minha lágrima
para o tempo
arranca de mim qualquer coisa próximo ao assombro

arranca de mim um pedaço de direito
arranca de mim o meu "eu disse"
MAS

oh




é

meu

direito

o d i a r


28/08/2017

For women who are 'difficult' to love

(Warsan Shire)


you are a horse running alone
and he tries to tame you
compares you to an impossible highway
to a burning house
says you are blinding him
that he could never leave you
forget you
want anything but you
you dizzy him, you are unbearable
every woman before or after you
is doused in your name
you fill his mouth
his teeth ache with memory of taste
his body just a long shadow seeking yours
but you are always too intense
frightening in the way you want him
unashamed and sacrificial
he tells you that no man can live up to the one who
lives in your head
and you tried to change didn't you?
closed your mouth more
tried to be softer
prettier
less volatile, less awake
but even when sleeping you could feel
him travelling away from you in his dreams
so what did you want to do, love
split his head open?
you can't make homes out of human beings
someone should have already told you that
and if he wants to leave
then let him leave
you are terrifying
and strange and beautiful
something not everyone knows how to love.



14/08/2017

océanique

Meu corpo, perfeitamente funcional, me sabota.
Me faz respirar pesado, se desmancha em suor gelado, derrete as geleiras do meu coração num falso amor por tudo o que há perto da morte; a l a r m e f a l s o.
Em contrapartida o amor faz troça, me rouba amizades das maneiras mais atrozes possíveis. Não consigo mais rir dessas brincadeiras. Perdeu a graça há eras atrás, no entanto insiste em acontecer sempre da mesma maneira a ponto de me fazer pensar o quanto há do peso da minha mão nisso. Se meu movimento é sempre diferente, se eu rio com certo sarcasmo ou se deixo meu corpo cair no esquecimento do tempo (aquele que eu chamo de rotina), o que muda?

Mas não seguro mais o choro:

Se há de ser salgado, há de ser oceano. gelado. infinito. cristalino.

ensurdecedor


14/06/2017

Já passa da meia-noite



Sentada com as mãos cruzadas sobre o torso, olhando pra um ponto distante atrás dela, tentando não medir as palavras, tentando não colocar um peso maior nelas do que elas já tinham, eu disse:
- Voltei a sonhar com mutilação. Aquele de cortar pedaços e tal. Fazia anos já.
Ela não tirou os olhos das anotações, mas imaginei ouvir os rastros da caneta esferográfica se tornarem levemente mais agitados sobre a superfície do papel. As palavras enchiam o ar como densas que eram, se arrastavam pelo chão, se enroscavam nos meus tornozelos. O peso das palavras me fizeram olhar pro chão, pesavam nas minhas pálpebras, nos meus globos oculares, na ruga entre as minhas sobrancelhas.
Ela começou a falar sobre remédios, sobre terapia, sobre controle, sobre tempo. "Descansar", eu ouvi.
Mas eu não acompanhava.

Saí de lá ainda com aquela linha que conectava meu olhar diretamente com o chão.
Meu corpo, absolutamente funcional me levou pra casa enquanto eu observava minhas mãos biologicamente perfeitas. Meus sentidos cuidaram da minha segurança. Minhas pernas foram assertivas e persistentes.
No entanto eu ainda tinha a sensação nítida de que eu poderia me desmanchar no meio do caminho, evaporar como se nunca tivesse existido. Não faria diferença, não há evidência de que isso não aconteça. Um nome a mais ou a menos na lista de desaparecidos seria isso e somente isso. No entanto, essa trama intrincada de células insistia em permanecer impecável em odiar a si mesma.

O quão engraçado é o autômato, ao se dar conta de si mesmo e da própria plenitude, desejar a autodestruição?

13/06/2017

I'm still here, honey



De novo confinada na liberdade opressora da rotina.

Novamente sentindo que não parece fazer sentido sonhar.
Mais uma vez deixando coisas pra trás.

Pedaços de mim espalhados por aí.
Caindo como podres, sem que eu note, sem que haja controle.
E aquela sensação de vazio volta a me dar algum prazer. A dor. O controle.
O formigamento das mãos, a dor na nuca, a pontada nas costelas.
Ir ao limite do meu corpo da maneira mais silenciosa possível.

Prestar atenção ao fato de que eu não consigo mais prestar atenção em nada.

Você me dá música, você me dá livros, você enche a minha boca de álcool.
Me abraça e diz que vai ficar tudo bem. Puxa minha orelha, diz que eu preciso descansar.
Eu sorrio e conto infinitas pessoas que parecem se preocupar.
Mas que eu não tenho coragem de dizer: eu sou um caso sem solução












E eu solenemente as devolvo tudo o que eu tenho e tudo o que eu posso dar:

meu mais sincero s i l ê n c i o

03/06/2017

Isso é sobre o tempo


Ou sobre a falta dele.






se eu sempre me pergunto como se remenda um coração quebrado







é no tempo que reside toda a cura
é no tempo que parece residir toda a explicação

mas dizem que no canto esquecido do tempo, a gente não aprende
dizem que no canto esquecido do tempo, a gente não se arrisca
dizem que no final do caminho mal percorrido do esquecimento reside um tipo de caos ordenado
um ouroboros em que o tempo encontra a si mesmo
uma rotina onde tudo o que se ouve é o ruído branco da ordem do caos
nesse canto, a paz da repetição parece um carinho bem vindo

e se eu me prendi na jaula da rotina num canto esquecido do tempo
se todo o amor que eu sinto agora vem puramente do conforto de não conseguir pensar
se eu me deixei ser amarrada pelo ouroboros
se eu abracei o caos ordenado e fui abraçada por ele
se eu tranquei a porta e joguei a chave fora
é porque daqui de dentro eu não alcanço ninguém, mas mais importante

aqui dentro










ninguém me alcança

Veja bem, meu amor: eu não me tranquei aqui dentro.
Eu tranquei todos pra fora.

21/05/2017

Bile


Não há nada hoje que não me traga prazer que não me traga dor na mesma proporção.
Culpa. Sensação de tempo perdido. Cheiro de morte.
Não ha nada que eu faça hoje que não me lembre constantemente das coisas que eu deixo de fazer.
Tudo o que existe, existe com o propósito de me lembrar do que não existe. Tudo o que existe, existe porque há algo que não existe em contrapartida.
Todas as minhas escolhas me lembram as coisas que eu deixei de escolher.

Todos os dias eu acordo com a plena sensação de que há algo errado. A solução parece estar fora de alcance. Então eu vivo o dia errado mesmo, porque é o que existe de real. E durmo com a consciência cheia da certeza de que o dia foi gasto com algo errado e que o dia seguinte vai ser errado também. Eu choro até dormir, mas tento me convencer de que nada pode me parar. Eu finjo que me movimento, mas não saio do lugar. Ensaio passos de saltos longos, pra longe, pra perto do silêncio que eu acho que a paz deve ter, mas não saio do lugar.

A falta de tempo tomou o lugar do que havia em contrapartida ao medo. E agora metade de mim é falta e a outra metade é abismo. Metade é maresia, metade é grito. Metade é ficar presa dentro de um escritório fazendo sempre as mesmas coisas, metade é se afastar de todo o resto pra evitar a dor inevitável que é amar (viver?). Não pensar nas coisas não me dá tempo de entendê-las. Permanecer sob o abrigo da falta de tempo me dá tempo suficiente para não digerir nada. Eu parei de aprender. Eu parei no tempo. Mais do que nunca, eu me afastei de tudo o que me fazia reinvenção. Eu abracei de bom grado o meu lugar no umbral, porque no umbral eu não preciso lidar com as nuances de ser humana. No umbral eu só sou.

Mas daqui de cima, quando o tempo se desdobra em três, quando eu ouço o doce ressonar entre a serenidade e a extravagância, respiro fundo o processo inevitável da vida. A colheita não foi doce, mas foi farta. Há de se agradecer ao solo e esperar pela esterilidade da terra. Há algo se movendo, a serpente avança sua mordida sobre a própria cauda, roça sua pele fria em torno do meu pescoço e aperta minha garganta com uma avidez paciente, disposta a me curvar.

Eu cedo.
Ao tempo, eu sempre cedo.

02/04/2017

Deu-se conta

de que relacionamentos pareciam muito com a bolha de ar na qual sempre procurou se refugiar. Uma cura. A saliva do cão que lambe as feridas. A idealização do silêncio que precede o amanhecer.
Deu-se conta de que a plenitude do silêncio parecia obstinadamente estar dentro da batida de um coração próximo ao ouvido, na temperatura morna de alguém respirando assim perto, recostada na curva do seu braço esquerdo.
Deu-se conta do desespero que cerca tudo isso, da antecipação de que um barulho ensurdecedor pare de enlouquecê-la, da ansiedade constante que é querer pertencer.
Deu-se conta de que todas tentavam fugir de alguma forma, de que todas tentavam curar-se, de que todas procuravam acalentar suas angústias, de que todas procuravam restaurar suas partes em alguma unidade perdida, como se nos abraços alheios (das outras) repousasse a última instância de todas as respostas.

Deu-se conta de que ela não era diferente.
Deu-se conta de que também procurava uma cura.

Mas também deu-se conta de que estava irremediavelmente sozinha.


07/01/2017

Play melancholy song



Há algo desconectado, como se eu pudesse sentir os fios soltos nas minhas mãos, fios sem vida, que eu tento separar de um bolo amorfo que na minha lembrança juntava diferentes partes do que eu acho que eu era.
A lembrança do que eu era, algo muito mais concreto do que era quando eu era e eu não era nada. Há sempre esse lugar pra me lembrar que a ideia de que eu um dia fui uma unidade não significa nada mais do que algo que eu acho que existiu. Uma unidade nunca existiu em mim. Eu sinto falta de algo que nunca aconteceu: unidade.
Eu sempre fui separada, jogada por aí, um tanto espalhada, amorfa, pedaços desconectados, uma cabeça cortada separada de um torso muito longo e pernas muito densas repousando em cada canto da sala, procurando sem solução voltar a uma unidade que nunca existiu, procurando a solução dentro dos braços de outra pessoa, dentro da ideia de que minha existência seria possível dentro de um lugar chamado amor. Um amor que nunca vai ser suprido, porque não existe. A ideia de amor romântico, my dear one, é tão somente uma ideia quanto é a minha ilusão de unidade. O amor não é um lugar, o amor não é o que vai me consertar, o amor é uma ideia. O amor é um buraco onde eu ponho coisas que eu acho que não mereço. O amor é o abismo que me observa e me desafia. Eu rio dele e tudo que eu ouço é o eco da minha própria risada, rindo de mim.
Me pergunto onde eu encontro minha plenitude? Onde eu posso só respirar e ser, um lugar pra pendurar minhas inseguranças do lado de fora, um lugar pra rir das minhas paranoias, um estado de expansão da alma. Há uma fórmula sem solução, não meramente matemática, mas muito mais profunda em mim, algo que envolve braços e mãos e um corpo que parece sempre pequeno demais pra conseguir me envolver por completo.
Me pergunto se isso que me venderam como amor é essa plenitude que eu procuro. Me pergunto se é isso que eu devo sentir. Me pergunto se é isso que eu devo procurar.