30/11/2017

Listen carefully

I'm daydreaming.

Interpol - Narc

Cause it's just you, me and this wire, alright
Let's tend to the engine tonight

Estou sentada em um sofá e a casa está cheia. sinto cheiro de álcool e cigarros. Música alta, mas nunca parece suficientemente alta. Uma garota de pele morena e olhos de gato encaixa suas pernas em torno da minha cintura e senta-se no meu colo. Abre minha boca com uma das mãos e derrama whisky da garrafa enchendo minha boca de calor e ardência. Não tenho tempo de engolir, num beijo ela me rouba a bebida. Sorri e empina a garrafa em um grande gole. Cerra os olhos e engole. Ainda fico com a boca entreaberta sem entender o que aconteceu. Tento qualquer reação. Ela me beija novamente e eu me entrego a algo entre a culpa e o desejo de silenciar algo no fundo da minha cabeça. Fecho meus olhos e penso em outra pessoa.

Placebo - Protége moi

Sommes nous les jouets du destin
Souviens toi des moments divins
Planants, éclatés au matin
Et maintenant nous sommes tout seuls

Estou sentada num banco próximo à parede pintada de preto. Está escuro, mas algumas luzes coloridas penetram minhas pálpebras fechadas. O toque dela na minha mão é frio. Não sinto meu corpo se mover, mas ele se move. Viro o rosto e minha boca procura a dela. Meu coração ameaça me abandonar, correndo escada acima. A respiração dela é morna e próxima. O beijo dura uma era. Meu corpo inteiro treme. Sinto minhas unhas enterrarem na carne macia das palmas das minhas mãos. Eu busco desesperadamente guardar essa cena na minha memória. Meu coração aos pulos desafina fica, fica aqui, não vai. Mas o mundo ao meu redor parece desaparecer e morrer. 

The Strokes - Juicebox

Waiting for some action
Waiting for some action she said
“Why won't you come over here?”

Estou com meus amigos. Cigarros e vinho barato em garrafas de plástico. Sinto frio, mas não me importo: eu flutuo. Eu ligo pra ele, digo que estou indo pra uma festa, pergunto se ele quer ir comigo. Sei que ele não curte a música, mas encaro como ousadia quando ele aparece. A gente dança, eu me sinto bêbada, mas ele parece não se importar. A mão fria dele parece elétrica quando toca a minha pele aquecida pelo álcool. Ele me convida para ir na casa dele. Eu não hesito. O efeito do álcool passa, mas minha pele continua em ebulição. Eu pergunto a ele onde fica o quarto. Ele sorri. O beijo parece qualquer coisa magnética, meu corpo parece puxar o dele contra o meu de alguma maneira inexplicável e selvagem. Há qualquer sincronia desconhecida de movimentos de braços e mãos e pernas e pele. Eu quero consumi-lo por inteiro, meu corpo parece precisar se alimentar dele. Eu sussurro, próximo ao ouvido dele fuck me, meus olhos muito abertos na escuridão. Há qualquer reação como um arrepio nele, fuck me uma faísca, um tremor e o mundo parece vibrar fuck me por um segundo. O quarto parece brilhar por segundos que parecem fuck me uma eternidade antes de virarem a escuridão em silêncio.

Ladytron - Destroy Everything you Touch

Destroy everything you touch today
Destroy me this way
Anything that may desert you
So it cannot hurt you


Voltamos de um passeio qualquer, ele quer subir para meu apartamento, mas eu não consigo pensar nele na minha cama. Ele me puxa pela mão através do quintal até a parte de trás do prédio. Me pressiona contra a parede com o peso e o calor incendiário do corpo dele. Encaixa a coxa entre minhas pernas e beija meu pescoço. O chão parece desaparecer sob meus pés. Há algo como uma sensação de entorpecimento dentro de mim, um chacoalhar ameaçador e provocante de não saber parar. Sinto minha mente rir histérica antes de gemer com sua voz rouca e lenta me devora. A mão dele parece deslizar sobre mim como qualquer coisa mágica entre a força e a paciência. Abre caminho entre tecidos, rasga a minha pele, me dilacera e me mantém viva, tão viva quanto eu nunca fui antes, tão viva quanto eu nunca desejei ser, de maneira insuportável, insustentável, inteira, unidade, histeria até que eu me desmanchasse, diluísse, anulasse, dissolvesse completamente, integralmente, absolutamente. Antes de fechar os olhos ainda consigo recolher meus pedaços que jazem exaustos no concreto.

Muse - Supermassive Black Hole

Glaciers melting in the dead of night
And the superstars sucked into the super massive
Super massive black hole

Me deito na cama estreita. Respiro fundo antes de decidir honestamente que vou tentar dormir. Fecho os olhos e escorrego rapidamente a um estado sereno de vigília quando ouço meu nome ser chamado. Abro os olhos. Meu nome é sussurrado novamente. Espero qualquer coisa acontecer, qualquer coisa que me dê a certeza de não estar dormindo. Vem pra cá, eu ouço. Continuo incrédula. Me sento na cama, o corpo em tremor puro, os pés em ponta no chão frio me fazendo arrepiar. Eu rio, minha voz parece metálica e apressada. Eu levanto e caminho em direção às vozes. Quatro mãos me tomam de assalto. Habilmente me deixam nua. Eu me entrego ao desconhecido. Mãos que encontram pele, olhos que vislumbram sombras, sussurros que encontram ouvidos, tão próximo, tão próximo, como se não houvesse nada a não ser tocado, nada a não ser preenchido, completado, derramado. Minha mente vaga para qualquer lugar próximo ao inexplorado, em que portas, janelas, umbrais se abrem infinitamente. Meu corpo parece conhecer disso muito mais do que eu poderia supor, sabe o que fazer, onde tocar, como se mover. Me agarro desesperadamente ao oculto enquanto mãos me aterram impiedosamente sobre o físico me fazendo ter certeza dessa decisão, me fazendo intimidadoramente terrena, consciente, alerta, segura. O mundo expande, infinito, se enche de uma grandeza indescritível. Eu adormeço entre braços e abraços, num sono sem sonhos. Eu sou o que eu sou, aqui, agora, pra sempre.

The Weeknd - Often

In my city I'm a young god
That pussy kill be so vicious
My god white, he in my pocket
He get me redder than the devil 'til I go nauseous

É domingo, acho que início de março de uma eternidade no passado. Acordo com o sol da manhã e a janela aberta. Fujo da luz, escorregando da cama para o chão. Meu corpo encontra outro e se aninha. Nunca estive tão desperta. A mão dele envolve minha cintura e se aninha nas curvas do meu corpo. Ele me puxa contra ele, assertivo, lento, temendo qualquer reprimenda, qualquer negativa, mas eu só sou toda atenta. Ele afasta meu cabelo, pousa os lábios na minha nuca. A mão dele entra sob meu pijama, segura meu seio. Todo o movimento é lento, tudo parece flertar com o ócio, todo o prazer parece poder esperar em fogo brando. Me aconchego sob o corpo tenso dele, no que parece ser um redescoberta do meu próprio corpo. Um tremor sobre em ondas vindo do corpo dele para o meu. Há qualquer coisa nas mãos grandes e mornas dele, uma falta de pressa, uma paciência, uma experiência, como se ele já tivesse me tocado antes, como se toda a espera fosse mais do que somente espera. Há qualquer cadência nesse desmazelo, uma obstinação em acordar todo e qualquer poro da minha pele, preencher meu corpo inteiro de suspiros sufocados. Um baque surdo me desperta, vindo diretamente de dentro de mim, uma provocação, um acordar. Por um ano meu corpo encontra outro corpo ao fugir da luz do sol. Por um ano, me sinto livre.

Black Coast - Trndsttr (Lucian Remix)

'Cause when your head's right, you take your time
It's something about the love of things you like

Quando ela entra no quarto eu estou nua, com a janela aberta e uma lua escancaradamente cheia banhando o quarto em luz fria. Ela hesita, ainda com a mão na maçaneta. Entra, fecha a porta, eu falo. Eu observo ela enquanto ela me observa. Não sei o que se passa com ela. Mas minha cabeça grita vem, me deixa entrar, me deixa te devorar, te entrega, te entrega, te entrega. Quando ela se aproxima os olhos azuis dela parecem tão escuros, enormes, imensos, negros, dilatados, brilhantes. Jogo as roupas dela no chão sem que ela consiga tempo pra reagir. As mãos dela me seguram como se eu fosse querer fugir a qualquer instante. Somos toda uma, boca, língua, mãos. Pouso o corpo dela sobre a estante, ela me abraça com força enquanto uma das minhas mãos envolve ela pela cintura e a outra a faz se derreter. Há qualquer coisa fascinante e indescritível em gritos silenciosos e lábios que tremem. O cheiro da pele dela me invade inteira, tudo em mim grita violentamente te entrega, te entrega, te entrega. As unhas dela se enterram na pele úmida das minhas costas enquanto eu enxergo o caminho que ela está tomando. Eu paro. Ela se entrega, desamparada, sem voz insinuando não, não. Eu sussurro então pede. Minha mente selvagem grita eu vou te fazer implorar. Ela se entrega, inteira, completa, infinita, líquida, fruta madura e suculenta. Me faz devorar cada pedaço, pomo de ouro e mel, me faz lembrar que mulher é fruta que se come com duas mãos cheias e boca transbordante.








I'm daydreaming.

                                I'm daydreaming.

                                                                I'm daydreaming.

                                                                                                I'm daydreaming.

22/11/2017

do outro lado do universo


[...]"Ah, fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, noites afora, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca  enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro estranho o cheiro preciso dele. Que não suspeitará da tua perdição, mergulhado como agora, a teu lado, na contemplação dessa paisagem interna onde não sabes sequer que lugar ocupas, e nem mesmo se estás nela. Na frente do espelho, nessas manhãs maldormidas, acompanharás com a ponta dos dedos o nascimento de novos fios brancos nas tuas têmporas, o percurso áspero e cada vez mais fundo dos negros vales lavrados sob teus olhos profundamente desencantados. Sabes de tudo sobre esse possível amargo futuro, sabes também que já não poderias voltar atrás, que estás inteiramente subjugado e as tuas palavras, sejam quais forem, não serão jamais sábias o suficiente para determinar que essa porta a ser aberta agora, logo após teres dito tudo, te conduza ao céu ou ao inferno. Mas sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por todos, que tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não importa. Por trás de todos os artifícios, só não saberás nunca que nesse exato momento tens a beleza insuportável da coisa inteiramente viva. Como um trapezista que só repara na ausência da rede após o salto lançado, acendes o abajur no canto da sala depois de apagar a luz mais forte no alto. E finalmente começas a falar."

Caio Fernando Abreu, In: Morangos Mofados (Natureza viva)

17/11/2017

you met me at a very strange time of my life

estou num vagão, me afastando constantemente e o ruído branco do metal contra o metal me leva constantemente a uma zona familiar de entorpecimento, mas o balanço desigual do caminho não me deixa adormecer com a cabeça escorada no vidro da janela. semicerro os olhos e penso em como eu entrei aqui, ou talvez eu já estivesse aqui e deveria ter descido dezessete estações atrás, mas não faz mais diferença.

estou num vagão, me afastando constantemente e não me atrevo a pensar em quem o em que eu deixei pra trás ou como isso aconteceu, não me atrevo a tentar lembrar se fui eu que entrei no trem ou se eu só deixei de sair dele. se a imagem clara de estar andando sobre os trilhos era real ou se é só minha mente adormecida tentando me fazer crer que algo hediondo aconteceu enquanto um eco silencioso vibra "garotinha patética, estúpida, egoísta, agressiva, invejosa!" - e as palavras soam familiares e quase engraçadas enquanto meus olhos escorregam para trás sob as pálpebras pesadas, mas há algo aqui, algo que não estava aqui antes, algo que me faz sentir qualquer coisa próximo ao escárnio pelas pedras dramáticas que meu coração implanta no caminho pra tentar me fazer tropeçar, há algo animalesco roçando as unhas sob a minha pele e me fazendo suspirar por algo que eu ainda não sei o que é.

estou num vagão, me afastando constantemente e a vibração sutil do banco me enche de uma excitação morna e lenta, quase infantil, fervendo meu sangue em fogo brando, pra liquefazer qualquer coisa congelada que havia em mim; e eu continuo me afastando nesse estado entre o sono e a vigília, sem saber se há algo como o certo ou o errado, mas ainda me sentindo perdida entre a minha origem e o meu destino.

estou num vagão, me afastando constantemente enquanto ao meu lado eu enxergo claramente eu mesma, sentada, muito atenta e muito acordada, coçando uma das suas vinte cabeças, enquanto uma vigésima primeira parece querer nascer como um tumor ao lado da cabeça nº 12. todas elas com muitos vincos na testa e pálpebras trêmulas sob olhares opacos e metálicos como grânulos de açúcar, como se a gravidade e a luz operassem diferentes ao redor de cabeças múltiplas que perderam a disposição e a criatividade para fazer planos. penso que preciso fazê-la acordar desse sonho que aparenta ser muito lúcido e pesado, penso que gostaria de fazê-la aproveitar a letargia e o movimento e talvez a falta de rumo (aquele pouco de loucura), talvez estender a mão para fora da janela e sentir a resistência do ar contra a pele, quero dizer pra ela que há prazer depois da esquina, que eu estou ao seu lado e que sentimentos são reais mesmo que nossos corpos os fabriquem de maneira quase mecânica - tudo pelo bem da sobrevivência e pela graça da piada de mau gosto, mas ela não parece querer me escutar, sequer parece me ver e eu me sinto afastar dela também, como se estivéssemos em vagões separados, tomando cada vez caminhos mais distantes.

estou num vagão, me afastando constantemente e sentindo que há algo muito urgente na necessidade de tocar, enterrar o rosto em mechas do cabelo de outra pessoa ou simplesmente passear as pontas dos dedos entre pelos arrepiados e chamar isso de intimidade ou só de silêncio porque há um tudo-bem em ser nada, em ser só mechas de cabelo e dedos e peles arrepiadas; por enquanto o tudo-bem parece estar aqui comigo, pra me dizer que há essas coisas humanas e que tudo-bem se apaixonar por pessoas que nem sabem quem eu sou, tudo-bem estar cansada-e-sozinha e não querer mais estar nem-cansada-nem-sozinha, tudo-bem não conseguir lidar mais com a solidão e nem com a intimidade, tudo-bem, deve existir algo nesse meio, uma forma de ceder sem se partir ao meio, um sorriso que não seja acompanhado de condescendência, um desejo sem culpa, entusiasmo sem cobrança, tudo-bem, há em algum lugar a serenidade e a extravagância em alguma coexistência imparcial e palpável.


estou num vagão, me afastando constantemente


estou num vagão, me afastando constantemente


estou num vagão, me afastando constantemente


estou num vagão, me afastando constantemente e tudo-bem


13/11/2017

sangre

eu não lembro do sol. o sol nunca parece chegar aqui. parece estar sempre bater em algo acima do céu, acima do que eu consigo enxergar, pouco à frente. porque a neblina está sempre aqui, úmida, fria e delicada, como se eu pudesse tocá-la ao esticar a mão.
tem sido mais difícil viver aqui. as lebres são raras e magras. as plantas queimam no inverno rigoroso e padecem sob a chuva fria. tudo o que eu tenho são mais dois invernos, talvez três, mas não mais do que isso. e tudo parece morrer aos poucos aqui, como se eu estivesse presenciando um fim penoso de ciclo, sem expectativa de reinício. tudo aqui, mesmo que parado no tempo, parece sofrer na espera de um fim agonizante, silencioso e inevitável.
sei que eu não estou sozinha aqui. e sei que não importa o que há ao redor, o que há aqui já me é familiar e já conhece o cheiro do meu silêncio. eu ouço eles ao redor da cabana. eu escuto eles se aproximarem da água, matarem a sede com seus passos cautelosos ao cair da noite. e eles parecem não se afastarem nunca.
gosto da ideia que eles existem aqui. que além de mim, dos pássaros que eu ouço e não enxergo e das aranhas com suas teias delicadas balançando suas gotas de orvalho na brisa, existe também algo selvagem e imprevisível.
há algum prazer eufórico nesses dias cinza em que eu flerto com a ideia de não estar só, com a ideia de morrer com a garganta dilacerada ou de estender minha mão e alimentar seja lá o que ronda esses espaços em branco do lado de fora.
deixo na rua pequenas oferendas, uma lebre ainda morna, peixes frescos e limpos. entro pra cabana e em pouco tempo sinto o cheiro nu do sangue invadir minha cabeça e molhar minha língua como se fosse eu a devorar a carne. entendo em troca receber qualquer reconhecimento de que eu existo, como se houvesse alguma necessidade muito humana a me lembrar que eu preciso de um eco para ser real.
fantasio frequentemente sobre me entregar à floresta e aos lobos, penso se eles me tomariam como presa tanto quanto eu gostaria de ser tomada; imagino se seria imediatamente dilacerada ou se haveria reconhecimento ou respeito na minha morte, imagino se eles entenderiam minha atitude humana de ser arrebatada e dilacerada para poder enfim existir, ou se existiria algum tipo de hesitação ao sentir o cheiro do meu último medo.
não há opção no entanto para a ideia que me ronda, de que não haverá resistência uma vez que eu decida me render às esferas não domesticáveis do meu próprio ser, uma vez que eu decida me render à minha própria natureza



08/11/2017

two lined

uma teia de aranha delicada e complexa no ponto de encontro de paredes altas de concreto. contraste tão absurdo entre animal e humano e no entanto, tão familiar aos meus olhos plúmbeos

acordar cansada mesmo tendo dormido muitas horas, observar o dia clareando através dos buracos da cortina velha enquanto convenço meu corpo a se sujeitar aos obstáculos das horas seguintes

ter alguém tocando meu corpo sem que eu possa retribuir o gesto, estar presa tão somente em um ato passivo em que eu deveria ter algum prazer e relaxamento, mas sentir apenas desconforto e medo

ver as cicatrizes demorarem a desaparecer da minha pele; ver minha pele ficar cada vez mais velha, com uma sensação certeira de que é irreversível

emendar peças de crochet cuja fabricação me renderam calos nas mãos inexperientes. vestir a peça apenas uma vez, esquecer que ela existe ou que alguma vez na vida eu soube como criá-la

a mão dele colada na pele suada do meu seio "ser humano é uma merda, a gente se rende a qualquer afeto como se ele fosse insubstituível", ele murmura. "sim", eu digo "ser humano é uma merda"

na estrada do tempo, me encontrar na exata encruzilhada vazia entre a sobriedade e a embriaguez, entre a frieza e o prazer, entre o ceticismo e a paixão

me perder no delírio-desejo de banhar meu corpo em mel e canela novamente, com a sensação morna e aconchegante de adormecer sem sonhos em lençóis de cetim

a visão dos meus cabelos cortados rente à cabeça, meus olhos encontrando um reflexo no espelho enquanto procuro alguma beleza em meio à loucura

andar horas na tempestade de verão daquela tarde quente, pessoas correndo, meus livros enrolados em sacolas plásticas na bolsa porque nada me importava mais do que meus livros

eu ajoelhada na sacristia, o padre se preparando para a missa, olha para mim e diz "er verheit Sie" com um meio sorriso no rosto. eu me agacho e beijo a barra da casula enquanto choro

minha mão passeando no veludo cor de vinho dos móveis antigos, o cheiro claro e inconfundível do piso de madeira escura e antiga

a cama pequena demais para três corpos, "que cor você vê?" ela perguntou. "verde", eu respondi. naquela noite, sonhei que era uma cigana, acordei em paz

depois de beber três copos de vinho peguei uma bolsa e fugi de casa, entrei em um estúdio e tatuei as palavras "metade amor, amor pela metade". nunca mais voltei pra casa

morrer afogada no mar ou queimada como as mulheres sábias do meu passado, mas ainda assim morrer inteira como parte de algo maior que eu


01/11/2017

Solilóquio

there's no good
there's no evil
i don't know a thing about future
i can't do shit about the past

for instance, there's no time other than now
there's no thing such as sin
we are what we are now
and we souldn't bear any wound

but i swear i'm afraid all the time
because
it seems there's no now at all
i'm floating between things and
i'm drowning in tears from my past

if i say to you that i'm tired of swimming
and if i say to you that i feel already dead
isn't it the same?


so i laugh
so i dance
so i dress up
i become Luna
i become a doll
i become a demon
i smile at you
i stop your movement
i wrap you in my arms
i stare at your soul until you break

but oh, honey
i am no one
i am just a mirror
dying in front of you