13/09/2017

onde está a matilha?

A neblina toca suave a superfície quieta da água que se abre logo após a saída da mata fechada. Eu segui a água até aqui em silêncio, sentindo medo e cansaço, fome, exaustão. Dormi sob a chuva, a neblina e o frio. Sobrevivi caçando coelhos esqueléticos demais pra se darem ao trabalho de se esconder antes do inverno. Pelos e ossos era o que parecia sempre me esperar.
Lembro de tentar reencontrar a matilha, mas um por um eles tinham desaparecido. Primeiro os pequenos que passaram pelo verão. Depois Gere, Maugrim, Licaios. Durante a caçada, durante o sono, não importava. E agora restava eu. E eu estava esgotada. Fraca. Vulnerável. E as noites ficariam mais longas. E os dias mais curtos. E os coelhos mais magros.
Amanhece no outono nublado. Eu estou faminta e pressinto qualquer coisa me seguindo na escuridão, mas sei que não há nada que vá me atacar, não aqui, quando há ainda algum respeito sobre o cheiro de sangue fresco da minha última caçada.
Mas elas me observam há tempos, essas criaturas. Fazem barulhos estranhos na mata, quebram galhos sob seu peso, respiram alto demais e deixam seu cheiro acre em tudo o que tocam. Não sabem de nada, essas criaturas. No entanto há algo de temível. Há algo que eu sei que Licaios estaria desconfiado, com seus olhos aguados semi-cerrados e suas orelhas abaixadas. Aqui há sempre algo no ar, nem que seja o silêncio pesado que precede o frio congelante. E aqui não há mais Licaios.
Nessas criaturas existe essa desconexão, essa cegueira pela leitura do ambiente. Não gosto disso. Elas faltam com algum nível de consideração, não há obediência pela ordem natural das coisas. Maugrim traria alguma sabedoria sobre isso, mas não há mais Maugrim aqui. Maugrim saberia o que fazer, não eu. Maugrim era uma sobrevivente. Eu sou algum tipo muito realista de covarde.
Eu bebo a água fresca e terrosa do lago. Por um momento me permito baixar a cabeça e fitar os olhos amarelos no reflexo à minha frente. Ainda sou eu mesma. Austera, silenciosa, faminta. Eu mesma. Quando foi que eu me tornei esse animal cauteloso? Eu me pergunto. Com esse olhar desconfiado por trás de um crânio alongado demais pra não ser apenas pelos, ossos e caninos muito longos? Não há nada aqui que me proteja, eu preciso...

Mas no reflexo eu vejo algo, uma agitação, algo atingir meu pescoço, assim sem aviso. A contemplação tem afinal um preço. Diante da dor aguda tento correr pra mata. Ouço dentro de mim Gere dizer

Nitka,



não






mais



tempo


12/09/2017

is this hell?

eu sei que choveu
choveu até que eu esquecesse o que era sol
choveu até que tudo fosse infinitamente cinza e úmido
vento, trovão, raio, tormenta
naveguei meu barco e torci infinitamente pra não me afogar na imensidão opaca e escura das águas

mas agora cá estou eu, depois da estiagem cinzenta que assolou esse lugar durante dias
arrastando meu barco por uma corda pendurada pelo ombro
chapinhando no lodo que se formou com todo o resto de coisas que a água conseguiu matar
com tudo o que foi afogado pela raiz a ponto de parecer tudo cadáver
resto
sobra indecifrável roçando meus joelhos cansados

Na linha do horizonte não há nada
nem sol
nem luz
nem paz

no meio do caminho só há o caminho que eu já percorri
o r o b o r o s