17/11/2017

you met me at a very strange time of my life

estou num vagão, me afastando constantemente e o ruído branco do metal contra o metal me leva constantemente a uma zona familiar de entorpecimento, mas o balanço desigual do caminho não me deixa adormecer com a cabeça escorada no vidro da janela. semicerro os olhos e penso em como eu entrei aqui, ou talvez eu já estivesse aqui e deveria ter descido dezessete estações atrás, mas não faz mais diferença.

estou num vagão, me afastando constantemente e não me atrevo a pensar em quem o em que eu deixei pra trás ou como isso aconteceu, não me atrevo a tentar lembrar se fui eu que entrei no trem ou se eu só deixei de sair dele. se a imagem clara de estar andando sobre os trilhos era real ou se é só minha mente adormecida tentando me fazer crer que algo hediondo aconteceu enquanto um eco silencioso vibra "garotinha patética, estúpida, egoísta, agressiva, invejosa!" - e as palavras soam familiares e quase engraçadas enquanto meus olhos escorregam para trás sob as pálpebras pesadas, mas há algo aqui, algo que não estava aqui antes, algo que me faz sentir qualquer coisa próximo ao escárnio pelas pedras dramáticas que meu coração implanta no caminho pra tentar me fazer tropeçar, há algo animalesco roçando as unhas sob a minha pele e me fazendo suspirar por algo que eu ainda não sei o que é.

estou num vagão, me afastando constantemente e a vibração sutil do banco me enche de uma excitação morna e lenta, quase infantil, fervendo meu sangue em fogo brando, pra liquefazer qualquer coisa congelada que havia em mim; e eu continuo me afastando nesse estado entre o sono e a vigília, sem saber se há algo como o certo ou o errado, mas ainda me sentindo perdida entre a minha origem e o meu destino.

estou num vagão, me afastando constantemente enquanto ao meu lado eu enxergo claramente eu mesma, sentada, muito atenta e muito acordada, coçando uma das suas vinte cabeças, enquanto uma vigésima primeira parece querer nascer como um tumor ao lado da cabeça nº 12. todas elas com muitos vincos na testa e pálpebras trêmulas sob olhares opacos e metálicos como grânulos de açúcar, como se a gravidade e a luz operassem diferentes ao redor de cabeças múltiplas que perderam a disposição e a criatividade para fazer planos. penso que preciso fazê-la acordar desse sonho que aparenta ser muito lúcido e pesado, penso que gostaria de fazê-la aproveitar a letargia e o movimento e talvez a falta de rumo (aquele pouco de loucura), talvez estender a mão para fora da janela e sentir a resistência do ar contra a pele, quero dizer pra ela que há prazer depois da esquina, que eu estou ao seu lado e que sentimentos são reais mesmo que nossos corpos os fabriquem de maneira quase mecânica - tudo pelo bem da sobrevivência e pela graça da piada de mau gosto, mas ela não parece querer me escutar, sequer parece me ver e eu me sinto afastar dela também, como se estivéssemos em vagões separados, tomando cada vez caminhos mais distantes.

estou num vagão, me afastando constantemente e sentindo que há algo muito urgente na necessidade de tocar, enterrar o rosto em mechas do cabelo de outra pessoa ou simplesmente passear as pontas dos dedos entre pelos arrepiados e chamar isso de intimidade ou só de silêncio porque há um tudo-bem em ser nada, em ser só mechas de cabelo e dedos e peles arrepiadas; por enquanto o tudo-bem parece estar aqui comigo, pra me dizer que há essas coisas humanas e que tudo-bem se apaixonar por pessoas que nem sabem quem eu sou, tudo-bem estar cansada-e-sozinha e não querer mais estar nem-cansada-nem-sozinha, tudo-bem não conseguir lidar mais com a solidão e nem com a intimidade, tudo-bem, deve existir algo nesse meio, uma forma de ceder sem se partir ao meio, um sorriso que não seja acompanhado de condescendência, um desejo sem culpa, entusiasmo sem cobrança, tudo-bem, há em algum lugar a serenidade e a extravagância em alguma coexistência imparcial e palpável.


estou num vagão, me afastando constantemente


estou num vagão, me afastando constantemente


estou num vagão, me afastando constantemente


estou num vagão, me afastando constantemente e tudo-bem


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