14/06/2017

Já passa da meia-noite



Sentada com as mãos cruzadas sobre o torso, olhando pra um ponto distante atrás dela, tentando não medir as palavras, tentando não colocar um peso maior nelas do que elas já tinham, eu disse:
- Voltei a sonhar com mutilação. Aquele de cortar pedaços e tal. Fazia anos já.
Ela não tirou os olhos das anotações, mas imaginei ouvir os rastros da caneta esferográfica se tornarem levemente mais agitados sobre a superfície do papel. As palavras enchiam o ar como densas que eram, se arrastavam pelo chão, se enroscavam nos meus tornozelos. O peso das palavras me fizeram olhar pro chão, pesavam nas minhas pálpebras, nos meus globos oculares, na ruga entre as minhas sobrancelhas.
Ela começou a falar sobre remédios, sobre terapia, sobre controle, sobre tempo. "Descansar", eu ouvi.
Mas eu não acompanhava.

Saí de lá ainda com aquela linha que conectava meu olhar diretamente com o chão.
Meu corpo, absolutamente funcional me levou pra casa enquanto eu observava minhas mãos biologicamente perfeitas. Meus sentidos cuidaram da minha segurança. Minhas pernas foram assertivas e persistentes.
No entanto eu ainda tinha a sensação nítida de que eu poderia me desmanchar no meio do caminho, evaporar como se nunca tivesse existido. Não faria diferença, não há evidência de que isso não aconteça. Um nome a mais ou a menos na lista de desaparecidos seria isso e somente isso. No entanto, essa trama intrincada de células insistia em permanecer impecável em odiar a si mesma.

O quão engraçado é o autômato, ao se dar conta de si mesmo e da própria plenitude, desejar a autodestruição?

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