08/11/2017

two lined

uma teia de aranha delicada e complexa no ponto de encontro de paredes altas de concreto. contraste tão absurdo entre animal e humano e no entanto, tão familiar aos meus olhos plúmbeos

acordar cansada mesmo tendo dormido muitas horas, observar o dia clareando através dos buracos da cortina velha enquanto convenço meu corpo a se sujeitar aos obstáculos das horas seguintes

ter alguém tocando meu corpo sem que eu possa retribuir o gesto, estar presa tão somente em um ato passivo em que eu deveria ter algum prazer e relaxamento, mas sentir apenas desconforto e medo

ver as cicatrizes demorarem a desaparecer da minha pele; ver minha pele ficar cada vez mais velha, com uma sensação certeira de que é irreversível

emendar peças de crochet cuja fabricação me renderam calos nas mãos inexperientes. vestir a peça apenas uma vez, esquecer que ela existe ou que alguma vez na vida eu soube como criá-la

a mão dele colada na pele suada do meu seio "ser humano é uma merda, a gente se rende a qualquer afeto como se ele fosse insubstituível", ele murmura. "sim", eu digo "ser humano é uma merda"

na estrada do tempo, me encontrar na exata encruzilhada vazia entre a sobriedade e a embriaguez, entre a frieza e o prazer, entre o ceticismo e a paixão

me perder no delírio-desejo de banhar meu corpo em mel e canela novamente, com a sensação morna e aconchegante de adormecer sem sonhos em lençóis de cetim

a visão dos meus cabelos cortados rente à cabeça, meus olhos encontrando um reflexo no espelho enquanto procuro alguma beleza em meio à loucura

andar horas na tempestade de verão daquela tarde quente, pessoas correndo, meus livros enrolados em sacolas plásticas na bolsa porque nada me importava mais do que meus livros

eu ajoelhada na sacristia, o padre se preparando para a missa, olha para mim e diz "er verheit Sie" com um meio sorriso no rosto. eu me agacho e beijo a barra da casula enquanto choro

minha mão passeando no veludo cor de vinho dos móveis antigos, o cheiro claro e inconfundível do piso de madeira escura e antiga

a cama pequena demais para três corpos, "que cor você vê?" ela perguntou. "verde", eu respondi. naquela noite, sonhei que era uma cigana, acordei em paz

depois de beber três copos de vinho peguei uma bolsa e fugi de casa, entrei em um estúdio e tatuei as palavras "metade amor, amor pela metade". nunca mais voltei pra casa

morrer afogada no mar ou queimada como as mulheres sábias do meu passado, mas ainda assim morrer inteira como parte de algo maior que eu


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