13/11/2017

sangre

eu não lembro do sol. o sol nunca parece chegar aqui. parece estar sempre bater em algo acima do céu, acima do que eu consigo enxergar, pouco à frente. porque a neblina está sempre aqui, úmida, fria e delicada, como se eu pudesse tocá-la ao esticar a mão.
tem sido mais difícil viver aqui. as lebres são raras e magras. as plantas queimam no inverno rigoroso e padecem sob a chuva fria. tudo o que eu tenho são mais dois invernos, talvez três, mas não mais do que isso. e tudo parece morrer aos poucos aqui, como se eu estivesse presenciando um fim penoso de ciclo, sem expectativa de reinício. tudo aqui, mesmo que parado no tempo, parece sofrer na espera de um fim agonizante, silencioso e inevitável.
sei que eu não estou sozinha aqui. e sei que não importa o que há ao redor, o que há aqui já me é familiar e já conhece o cheiro do meu silêncio. eu ouço eles ao redor da cabana. eu escuto eles se aproximarem da água, matarem a sede com seus passos cautelosos ao cair da noite. e eles parecem não se afastarem nunca.
gosto da ideia que eles existem aqui. que além de mim, dos pássaros que eu ouço e não enxergo e das aranhas com suas teias delicadas balançando suas gotas de orvalho na brisa, existe também algo selvagem e imprevisível.
há algum prazer eufórico nesses dias cinza em que eu flerto com a ideia de não estar só, com a ideia de morrer com a garganta dilacerada ou de estender minha mão e alimentar seja lá o que ronda esses espaços em branco do lado de fora.
deixo na rua pequenas oferendas, uma lebre ainda morna, peixes frescos e limpos. entro pra cabana e em pouco tempo sinto o cheiro nu do sangue invadir minha cabeça e molhar minha língua como se fosse eu a devorar a carne. entendo em troca receber qualquer reconhecimento de que eu existo, como se houvesse alguma necessidade muito humana a me lembrar que eu preciso de um eco para ser real.
fantasio frequentemente sobre me entregar à floresta e aos lobos, penso se eles me tomariam como presa tanto quanto eu gostaria de ser tomada; imagino se seria imediatamente dilacerada ou se haveria reconhecimento ou respeito na minha morte, imagino se eles entenderiam minha atitude humana de ser arrebatada e dilacerada para poder enfim existir, ou se existiria algum tipo de hesitação ao sentir o cheiro do meu último medo.
não há opção no entanto para a ideia que me ronda, de que não haverá resistência uma vez que eu decida me render às esferas não domesticáveis do meu próprio ser, uma vez que eu decida me render à minha própria natureza



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