27/01/2010

Nemo ad impossibilia tenetur

Naquela tarde, Amara se sentira mal na escola. Achava que era uma dor qualquer, um mal-estar por causa do calor de Janeiro. Uma aspirina, duas, nada. Um pouco mais de água, talvez. A dor piorou. Chamou a melhor amiga pra acompanha-la no banheiro da escola, pra lavar o rosto, descansar um pouco. "Amara, tem sangue na tua calça", a amiga espantada já corria pra não deixar que Amara caísse.


Amara sentiu rápido o frio do chão do banheiro nos ossos, estava dentro dela, e ela se sentia tremer. A dor gritava de dentro dos seus pensamentos, confusos, e parecia querer sair dela rasgando-a devagar do ventre pra fora. Ouvia muito de longe a voz de Laura chamando ajuda dos professores. Depois disso, tudo foi silencio.

Levaram Amara para o hospital mais perto e ela ficou lá, não sabe por quanto tempo. Entre a vigilia e a consciencia ouvia comentários entrecortados em vozes que ela não conhecia. Ouviu a voz de sua mãe, e seu lamento contido. "Ela não sabia... Isso não é raro na idade dela.", "Não, não me parece ter sido forçado. Os exames não encontraram nada, nem remédios, nem chás, nada."

Algum tempo depois, ficou consciente. Se preparava para chamar alguém quando viu a enfermeira entrar no aposento pra trocar os lençóis do paciente ao lado. Tentou chamá-la, mas ainda se sentia fraca, resolveu descansar mais um pouco.



- O que aconteceu com essa, Juliana? - Dos pés da cama dela, outra enfermeira analisava uma prancheta.

- Aborto espontâneo, chegou aqui quase morta, teve uma hemorragia. Administramos as medicações de procedimento, e mais três unidades de sangue pra que pudéssemos ficar tranquilos. Ela teve febre e a curetagem foi evitada. Administramos Misoprostol, estamos aguardando a recuperação dela. - Juliana falava dela com um certo desprezo na voz.





Então era isso, um aborto. Ficava mentalmente tentando contar o tempo, tentando saber onde havia se perdido. Então sentiu um medo irracional, medo do que poderiam pensar dela e de como tinha sido uma criança. E quase botara todos os sonhos dela fora.

Ao menos a achavam inocente, mas já sabia do fardo há cerca de seis dias. Contou mentalmente, devia estar com quase três meses.

Aqueles seis dias anteriores o terror havia se apossado dela, como se não houvesse saída. Faltou à escola, chorava dia e noite. Teve vontade de esmurrar a própria barriga, de gritar até que a criança saísse. Laura não sabia, ninguém sabia. Laura era responsável demais e a odiaria. Teve vergonha de como a amiga a olharia com desprezo. Sentia o desespero de estar em uma armadilha, algo feito por ela mesmo. Pedia a Deus que tirasse a criança dela. "Eu nunca mais faço isso, eu juro!", dizia baixinho em desespero.

Lá pelo terceiro dia, quando se sentia cansada demais para chorar, começou a compreender que talvez tudo desse certo. Ela podia fazer aquilo, já era quase adulta! Sua mãe a ganhara com mais ou menos a mesma idade. Nunca achou que pudesse se pensar mãe, não com dezessete anos. Então era verdade. Precisava começar a pensar racionalmente.

Colocou uma meia duzia de peças de roupa na mochila, talvez tivesse que dormir na casa de Laura quando a mãe soubesse o que acontecera. A mãe de Amara era alguém potecialmente imprevisível.

No dia que se seguiu, teve um mal estar, não conseguiu levantar da cama. No outro, conseguiu a custo ir á escola, mas então, tudo aquilo aconteceu. E ainda se lembrava do chão do banheiro onde tremia.



-Tenta entender criança, que as coisas raramente acontecem como a gente quer. Pra outras pessoas, nunca ocorrem. Quando a gente aprende a gostar de algo que não gostava, então a vida dá um jeito de mudá-la. Talvez você tenha sorte... ou não.- A enfermeira tentava a confortar com um sorriso forçado no rosto.

Amara não respondeu. Não sabia a resposta, ou talvez ela não existisse.



Foi só uma vez, matou aula, fugiu com um garoto que conhecera na frente do bar da escola naquele mesmo dia. Tentava se lembrar do nome dele... Vitor, Mateus, Paulo? Nem isso. Sim, ela era a pior pessoa do mundo. "Deus é idiota. Não... Eu sou idiota."

Apesar de tudo, um vazio tentava tomar o lugar do desespero; Talvez ela quisesse a criança. Pensou uma vez em um nome, "Arthur, porque era o nome do meu vô", chegou a falar pra prórpia barriga, aparentemente do mesmo tamanho de meses atrás. "E se for menina?... Não... Decididamente um garoto"; Fazia poses em frente ao espelho, tentando notar alguma mudança, o que tornava aquilo ainda mais surreal.



Já em casa, deitada no sofá, semi-recuperada, ouvia sua mãe andando de um lado para o outro no quarto ao lado, discutindo com alguém no telefone. Provavelmente seu pai. "Onde foi que a gente errou? Onde?... Fala com a tua filha Osvaldo, fala com a tua filha!"

Talvez fosse um castigo, porque como disse a enfermeira, "As coisas raramente acontecem como a gente quer"; E Deus a estava castigando. Já estava se acostumando à ideia de algo apenas pra si. Mas então era isso... A vida não era como desejava.

Levantou-se ainda meio tonta e foi ao quarto e detrás do travesseiro organizado, ao lado de seu urso de pelúcia encardido, retirou um par de meinhas amarelas minúsculas. Calçou nos dedos e andava com eles sobre os seios de menina que imaginava cheios de leite, pensando em pequenos pezinhos cor-de-rosa mornos e perfurmados. Talvez tudo isso fosse um erro, mas não cabia a ela julgar.
Então, a criança se fora e levara um pedaço dela junto. Talvez o pedaço mais vivo que ela já teve, o que a fazia real, o que a fazia sentir-se diferente, única de uma forma simples e doce, mesmo que por tão pouco tempo. E dali por diante talvez, ela ficaria grávida pra sempre, prenha de sonhos que nunca nasceriam.

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