29/01/2010

Levitação

- Então, acho que te devo algumas coisas - Ela começou - Te devo algumas noites de paz e o meu silêncio puro. Não o meu silêncio típico, mas o silêncio que se carrega nos dias de paz. Porque é isso que se faz, não é? Ficar em silêncio apreciando a paisagem doce, o por do sol, o balançar do rio suave. Sem exigir, sem se importar. Eu nunca deixei de ver as pedras no fundo do rio; Eu nunca deixei de sonhar com aquele lugar.
- Então você é feliz - Eu afirmei enquanto acendia outro cigarro.
- Acho que sim. - Ela fixou o nada. Se inclinava graciosamente sobre a mesa e seus seios de menina pareciam ainda mais belos sob o tecido. - Te devo um beijo. Aliás, acho que te devo milhares, mas acho que se o beijo ocorresse agora, então seria vazio, sem significado.
- Claro, como todos os beijos que você distribuiu por ai.
- É, acho que sim. O beijo seria absurdamente sem sentido, embora eu ainda guarde um pra você, pra uma hora especial. Talvez na hora da morte, um último beijo. Ou talvez seja o beijo que me desperte.
- Romance. Você também me deve uma folga disso, não? - Eu a encarei duramente e ela me olhava carente com seus olhos cinza-brilhantes. Se ajeitou na cadeira enquanto arrumava os cabelos castanhos na presilha que eu dera pra ela. Carregava na cintura algumas dezenas de fitas de cetim cuidadosamente amarradas pra lembrar das pessoas que lhe fizeram perder o fôlego. Quando queria sentir a paixão de novo, então apertava um pouco mais uma fita. Quando me olhou de volta era carregada de uma ironia que não combinava com ela:
- Não foi eu quem me criou, foi você. Eu não sou assim porque quero, sou assim porque um dia na sua infancia doentia o caminho para a separação foi criado, mas você não o interiorizou muito bem. Eu sou o inicio do romance da sua vida, a personificação do seu desejo mais íntimo, o seu Complexo de Electra.
- Não acho que eu tenha isso. - Olhei-a incrédula.
- Você nunca acha que é doente. Você é doente. E eu sou uma parte disso. - Ela apertou três fitas da cintura em sequencia. Fechou os olhos enquanto prendia a respiração, antes de soltá-las em um suspiro.
- Então, o que você me deve é uma cura. - Eu observava o cigarro queimar sozinho, com centímetros de cinzas penduradas antes de cair.
Ela pensou, confusa perante a minha epifania. Franziu as sobrancelhas bem desenhadas, a mão deslizou devagar nas pregas do vestido num gesto lento.
- Sim, talvez eu te deva isso. Talvez então seja isso, no fim. Acho que vou embora agora. O que devo te falar? Que foi bom estar aqui com você durante tanto tempo? Que vou sentir sua falta? Que ainda te devo o melhor beijo da sua vida? - Ela sorria como a adolescente que um dia eu fui - inocente.
- Não, apenas diga que vai voltar, só. Um dia, quando eu precisar de novo de você; - Eu a encarei novamente e meus olhos se encheram de lágrimas que eu forçava pra segurar.
- Certo garota, tente se cuidar. Eu volto, talvez. E tente não chorar minha ausência. Você nunca foi boa com separações.

Ela se virou e seu vestido de algodão cor-de-rosa girou graciosamente enquanto ela ia embora. Instantaneamente meus olhos secaram e minhas entranhas se moveram em protesto. Eu tive medo por um instante, então passou. Talvez, separar-se de si mesma não seja tão ruim. Talvez meu problema com separações fosse só uma parte do meu romantismo aparentemente incurável.

Minha vida sem romance seria estranha, mas eu viveria.

Um comentário:

  1. nao sei por que. nao gosto dela.
    me irrita. te torna menor do que é, menos forte, menos sincera.
    espero que ela se sufoque de vez. (escrito em um acesso de raiva de romantismos)

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