Ergueu-se, abriu o guarda-roupa e retirou de lá uma caixa forrada de um tecido macio e multicolorido. "Boas lembranças", esboçou um sorriso que beirava o deboche. De dentro dela, retirou algumas cartas e fotos e se dirigiu até a rua gelada.
Nevava lá fora e ela era uma sombra vestida de negro diante à imensidão branca e úmida da noite. Parou-se aos pés de uma velha árvore seca, ajoelhou-se como em uma prece, e com as mãos nuas, começou a cavar devagar.
Ao não mais sentir a ponta dos dedos, achou o que procurava, o solo macio, úmido, fresco, a amada mãe terra. Cavou mais fundo até que entrasse quase todo o seu braço naquela fossa escura e depositou ali, todas as suas lembranças.
Fechou os olhos, acendeu outro cigarro, encostou-se no tronco forte da árvore e voltou-se para prestar atenção em todas as palavras que a voz sussurrava.
"Livre-se de tudo. Livre-se de cada parte dela. Não deixe restar nada, nem um resíduo, nem uma lembrança. Um simples cheiro é a semente de todo o mau. Concentre-se, seja forte. Livre-se dela."
Lucine pegou a garrafa de gasolina e depositou a metade do conteúdo no buraco, sobre as fotos, sobre as cartas. Vagarosamente deu uma última olhada em todas elas e derramou a última lágrima. Acendeu um fósforo e, como se parecesse um acidente, derrubou-o no buraco. Imediatamente uma labareda amarelo-alaranjada tomou os papéis com um forte calor e Lucine ficou ali, terminando seu cigarro enquanto tudo queimava vorazmente.
Em poucos minutos, tudo era brasa morna, que logo foi coberto de terra e neve molhada, pra ser esquecida em meio ao inverno rigoroso.
A moça de cabelos curtos resolveu ir pra casa. A voz nunca mais iria dar-lhe conselho nenhum, mas ao passar perto da ponte que levava-a à sua casa, ela a ouviu novamente.
"Leve-a embora, mate-a, livre-se de cada simples lembrança dela".
Então Lucine, em um lapso de verdade absoluta, sentiu-se impregnada daquele cheiro, daquelas palavras, daquele pedaço de lembrança. Nem todo o fogo do mundo extinguiria aquilo que se instalara na sua própria pele, em cada poro, em cada fio de cabelo, em cada olhar ou idéia. Nada a fazia lembrar... Ela era a própria lembrança.
Subiu no parapeito da ponte alta, encheu seus pulmões cinza daquele ar congelado, abriu os braços e voôu. Voôu para a correntesa escura e fria da água, voôu segura da verdade que tomava conta dela, voôu de olhos fechados para nunca mais abri-los de novo.
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